Em
Tristes Trópicos, Lévi-Strauss ilumina aquilo que irá
tornar-se o principal eixo teórico de toda a sua vasta produção
científica: a relação natureza e cultura e a subsequente indagação
sobre a natureza do Homem, que para o autor só poderá ser
convenientemente compreendida quando encontrarmos o caminho de volta
à compreensão de como o Homem está relacionado à Natureza.
Formular
o objeto da investigação nesses termos implica reconhecer que a
vida social, em qualquer agrupamento humano, não é um caos
incompreensível, mas se ordena através do costume. Que esses
costumes, muitas vezes incompreensíveis para nós, possuem
significado para os membros da sociedade em questão. O que
caracteriza a "natureza humana" é justamente o grau de
ausência de orientações intrínsecas, geneticamente programadas,
na modelagem do comportamento.
Despojada
dessas orientações, toda ação humana e a própria sobrevivência
da espécie ficam condicionadas à constituição de orientações
extrínsecas, construídas socialmente através de símbolos. A ideia
fundamental é a de que a vida social é ordenada através de
símbolos organizados em sistemas. O corolário dessa concepção é
a negação de uma base natural (e biológica) para a sociedade.
É
justamente na busca pela compreensão do que é ser humano e na
identificação dos grandes universais humanos, que Lévi-Strauss
desperta nosso interesse sobre a necessidade de melhor mapearmos os
mecanismos envolvidos no processo de comunicação e interpretação
simbólica, em especial nos sistemas classificatórios que procuram
dar conta dos signos produzidos na relação do homem com a natureza.
Nesse sentido, parodiando Lévi-Strauss, os animais – e também as
plantas, em qualquer ambiente humano, (e muito antes de serem coisas
boas ou não para comer), servem como coisas boas para pensar. A
cultura portanto, “… não pode ser considerada nem simplesmente
justaposta, nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido,
substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma
para realizar uma síntese de nova ordem.”(1)
Orientados
por estes princípios básicos, é que procuramos transcrever este
depoimento, que muito além de retratar a memória pessoal, revela
parte das relações sociais imbricadas na tecitura da teia social
formativa da sociedade mogiana atual e em especial, do ambiente rural
nas primeiras décadas do século XX.
O Sr.
José Mello, nascido em 4 de Março de 1936, filho de Benedito de
Souza Mello e de Paulina Maria de Souza Mello, recorda de seus tempos
de criança no bairro do Itapeti onde, por ocasião da Semana Santa
(entre os meses de Abril e Maio), abundavam os cardumes do camarão
de água doce (Macrobrachium sp), popularmente designado como
Pitu. A pesca deste crustáceo era exercida durante todo o ano como
complemento alimentar mas, seja pela coincidência do costume
católico de não ingerir carne, seja pelo aumento da ocorrência, a
captura ampliava-se durante este período.
A coleta
é feita com uma peneira entretecida com pequenas fasquias de taquara
de lixa ou pinima.(2) Ao trabalho envolvendo a captura, chamam por mariscar.
“Por ocasião da Semana Santa, mariscava-se por 10 minutos e a
gente recolhia uns 2 quilos de camarão.”
Hoje, o
camarão tem uma ocorrência extremamente reduzida na região,
provavelmente devido à contaminação dos córregos e ribeirões
pelo uso não controlado de defensivos agrícolas. Mas mesmo àquela
época de fartura, peixes e camarões começaram a escassear.
O motivo
então, devia-se ao fato de os filhos da proprietária da Fazenda
Maria Leite, “Nhá Maria”, localizada às margens do rio Lambari,
passarem a utilizar a pesca com timbó
com muita frequência. Os peixes iam descendo, mortos, pelo Lambari
até o (rio) Paratey”.
Mesmo
nos períodos de menor abundância, o mariscar
era constantemente empregado. Com o camarão, preparavam-se bolinhos
com farinha de milho, consumidos assados ou fritos. Mas o mariscar
envolve alguns perigos: a gripe e a febre: “Nos meses de Janeiro
até Março, a pessoa marisca
cedinho, na madrugada, e à noite, no dia seguinte pode ficar doente,
com febre. A febre pode matar. Para curar, apenas curador.
Me lembro de Dona Crava (Cravelina Pereira), avó do
senhor Angenor Pereira, ardendo de febre, no meio do dia, após
mariscar pela manhã. Mandou chamar uma curandeira (de quem não
lembro o nome). Morava retirada do bairro, veio a cavalo, ainda com a
luz do dia e ordenou pro marido de Dona Crava:
__ Nhô Paulo, vai lá no pasto e procura a Erva de
Passarinho(3) no pé da Vassoura Branca (provavelmente Sida sp)!
__ Mas Dona, nunca vi Erva de Passarinho na Vassoura
Branca!
__ Vai ali, que Vosmecê encontra.
A erva localizada e retirada da árvore é cozida e ainda quente,
administrada. Logo após, a enferma adormece.
“Vai dormir uma hora”. Diz a curandeira. E realmente, uma hora
após, Dona Crava acorda chamando por uma das filhas, reclamando de
fome, pedindo o que comer. Estava curada!
Sem assistência médica, pública ou privada, semi-isolados, os
habitantes do Lambari tratavam as doenças cotidianas com curadores e
benzedores, o único socorro. Muitas as doenças pulmonares, a febre
amarela, a varicela e o tifo: “A pessoa ia apodrecendo por dentro,
fedia”. Como preventivo, chá de marcelinha.(4)
Nos
anos 30-40, Miguelzinho, um dos mais reconhecidos curadores da
região, tinha por moradia as proximidades da Freguesia da Escada, em
Guararema. Negro e cego de um olho, preparava garrafadas.
Pela distância e dificuldade de transporte, o enfermo era
representado por um emissário – normalmente parente próximo –
que narrava ao benzedor os sintomas do doente. A partir desta
anamnese cabocla, Miguelzinho preparava a garrafada. Em certas
ocasiões, após o preparo, olhava o recipiente contra a luz e já ia
avisando: “Pode levar, mas esse aí não tem mais jeito.”. Era
comum acontecer, quando do retorno, o emissário encontrar morto o
parente...
Mas
o que nenhum curador ou benzedor dava jeito mesmo era à febre.
Ela vinha entre os meses de janeiro e março. Não era a “febre do
macaco”, nem gripe, apenas a febre.
Altamente contagiosa, atingia os caboclos sem distinção e com certa
preferência aos mais fortes:
No Engenho Beija-Flor, tinha um caboclo que montou
moradia recente. Era um caboclo forte, bom de trabalho, que
trabalhava 12, 14 horas seguidas. Num final de semana, estava
amolando a enxada prá capinar a cana. Na segunda-feira, após o
trabalho, deitou-se com febre. Na terça-feira estava morto.
Também o ajudante de meu pai morreu assim, em um dia.
O
último recurso, era a “dosa acônica” - acônico(5) + beladona(6). A “dosa”, pela toxidade das substâncias empregadas no
composto, era administrada em pequenas gotas, diluída em água. Para
isso, utilizavam de um pequeno dosador, um pequeno bastão de vidro
maciço em forma de L, que mergulhado no recipiente, retinha pequena
parte do preparado, extremamente viscoso. Curava a gripe, mas não a
febre.
A febre provocava tremores de frio e suadouros. “Mexia
com a ideia da pessoa. A pessoa ficava andando pela casa, a esmo,
agitada. Depois morria.”
Não
só da febre morria-se
no Itapety. A varicela também grassava: “o corpo todo pipocado, em
carne viva” e também, a “bexiga preta”:
Perto de Jacareí, muita gente morria com a bexiga.
Passava um carroção pelo bairro levando os corpos. As pessoas se
escondiam do piloto e do ajudante, mato a dentro, com medo do
contágio.
Uma vez, levaram um farmacêutico, a cavalo, prá
prestar socorro. Um casal morreu, horas seguidas, um após o outro.
Nas vizinhanças, morria o cunhado.
Meu pai, Benedito de Souza Mello, era capelão da Capela
do Santo Alberto e benzedor bastante conhecido aqui no bairro do
Itapeti. Era o responsável por preparar os enterros.
Os médicos da cidade (Mogi das Cruzes), por total falta
de recursos, não conseguiam realizar as vistorias sanitárias
necessárias, e quando um doente morria, meu pai se encarregava de
conseguir o atestado de óbito junto aos médicos.
Àquela época, tinha o Dr. Rosa(7),
o Dr. Deodato Wertheimer e o Dr. Lamartine. Ir até Mogi das Cruzes,
representava 3 horas a cavalo, ou 4 horas no lombo de mula ou burro.
O Dr. Lamartine era o mais complicado, pois fazia questão de visitar
o falecido prá expedir o atestado. Já com o Dr. Rosa, era mais
simples, pois ele conhecia bem meu pai e também porque gostava de
“chutar” (beber).
Meu pai o procurava, primeiro pelos bares, quase nunca
no consultório, e no bar, o Dr. Rosa perguntava:
__ Oi Mello! Morreu gente por lá, não foi?
Caminhava com papai, do bar ao consultório e lá
arrematava:
__ E o tipo da doença?
__ Febre, seu Doutor.
E daí, encaminhava o atestado de óbito, sem nada
cobrar …
(2) O
Sr. José Mello e seu irmão, Joaquim de Souza Mello, insistem em
fazer uma distinção entre peneira e apá.
Não só conhecem a atribuição tupi mas a diferenciam
funcionalmente: na peneira, o entretecido é maior, de forma a
permitir o escoamento rápido da água, já no apá,
as malhas encontram-se unidas, fechadas. A apá é utilizada para
“abanar” o arroz, separando os grãos previamente pilados da
casca,
(3) Erva-de-passarinho,
Struthantus flexicaulis. O
suco das folhas frescas, é recomendado para bronquites, pneumonia,
pleurisias, hemoptises, dores no peito, pontadas e outras afecções
respiratórias. O decocto, para doenças do útero e hemorragias.
(BARBOSA, Edglay Lima. Arte e Ciência.
05 Fev 2008. Disponível em
http://www.webartigos.com/artigos/erva-de-passarinho-proliferacao-ou-erradicacao/4029/).
(4) A
marcelinha, marcela ou marcela-do-campo (Achyrocline sp),
possui origem na região sul e sudoeste do Brasil, dotada com as
seguintes propriedades terapeuticas: Antiinflamatório,
antiespasmódico (reduz contrações musculares involuntárias) e
analgésico, sedativa e emenagoga. Disponível em CULTIVANDO.
http://www.cultivando.com.br/plantas_medicinais_detalhes/marcela_do_campo.html).
(5) Aconitum
napellus. Trata-se de um veneno de ação potente e rápida. Seu
uso deve ser realizado em doses homeopáticas. É indicado em casos
de asma, bronquite, congestão pulmonar, coriza, doença
inflamatória, febre com delírios, feridas na pele, gota, gripe,
hipertrofia do coração, laringite aguda, nevralgia facial,
nevralgia lombociática e do trigênio, palpitação nervosa,
pneumonia, reumatismo, tosse espasmódica e úlceras (PLANTAMED.
Aconitum napellus L – Acônito.
Disponível em
http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Aconitum_napellus.htm).
(6) Planta
de extrema toxicidade em todas as suas partes, a beladona (Atropa
belladona), rica em atropina e escopolamina, possui efeitos
terapêuticos utilizados no tratamento da bradicardia sinusal, na
dilatação pupilar no Parkinsonismo, na prevenção de cinetose,
como pré-medicação anestésica para ressecar secreções e em
doenças espásticas do trato biliar, cólico-ureteral e renal,
entre outras indicações (ERVAS e Insumos. Disponível em
http://ervaseinsumos.blogspot.com/2009/03/beladona.html).
(7) Dr.
Luiz de Azevedo Rosa.