Gente da terra, estrangeiros e os caminhos de ferro.A ferrovia na região Sabaúna-Guararema
Pelos
caminhos antigos que ligavam a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro
transitaram tropeiros transportando variada mercadoria no lombo de
tropas em animais de carga. Em determinados trechos navegáveis, o rio
Paraíba também era utilizado, como da Freguesia da Escada até
Cachoeira Paulista, como registraram os viajantes do início do século
XIX.
Com
o desenvolvimento da economia cafeeira no vale do Paraíba, o trabalho
do tropeiro e de auxiliares na tropa era procurado em todas as regiões
cortadas pela Estrada Geral sendo que o serviço infantil de crianças de
dez, doze ou quatorze anos era utilizado como demostra o seguinte
contrato de trabalho de 1864:
eu, José Maria de Santa Anna contratei com o senhor Alferes... dar-lhe o
meu filho legitimo de nome Antônio de Santa Anna de idade de quatorze
anos mais ou menos para lhe prestar o serviço de cozinheiro da tropa,
sendo para Jacarey e sendo daqui para Santos.”As
relações de servidão estendiam-se à infância que não era reconhecida
como um tempo de vida, servindo o menor de acompanhante ou trabalhando
na tropa de transporte de café.Ao mesmo tempo, a construção dos caminhos
de ferro, avançavam pelo século XIX, onde a rapidez e eficiencia do
trem contrastava com as tropas e decretava a substituição lenta do
tropeiro.
Contemporâneo
a este contrato de trabalho na tropa e as atividades do tropeiro no
transporte do café, houve a tentativa de construção de uma linha férrea
para escoar a produção do Vale do Paraíba para o porto de Santos, via Freguesia da Escada, em
1863.Ao mesmo tempo que a ferrovia Santos-Jundiaí era construída, o
engenheiro inglês Daniel Makinson Fox responsável por aquela
construção, procedeu aos estudos de uma via férrea entre a estação do
Rio Grande, no alto da serra do Cubatão, e a Freguesia da Escada, daí em
diante numa utilização mista, a navegação do Paraíba em conjunto com a
ferrovia.
A
concessão foi atribuída ao Barão de Mauá que não conseguiu organizar
companhia para a construção. Mais tarde, em 1865, o projeto é estendido
até Jacareí e a concessão para exploração, atribuída a Gomes Leitão,
barão do café e um dos maiores escravocratas e traficante de escravos da
província, porém a parte da navegação fluvial, não inspirando confiança
para o transporte de café, impediu novamente a criação de uma
companhia.
Em
1871, lei provincial decretou a construção de uma linha de São Paulo a
encontrar os trilhos da estrada de Ferro D. Pedro II, começando as obras
em 1873 e no mesmo ano se trabalhava simultaneamente de São Paulo a
Guaratinguetá.
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locomotiva Baldwin similar a utilizada na região |
A
obra foi dividida em três seções: a primeira, de São Paulo à Jacareí,
uma intermediária, de Jacareí a Caçapava e finalmente, de Caçapava à
Cachoeira. A primeira seção era a que compreendia maiores dificuldades e
trabalhos, com pontilhões e pontes construídos sobre tijolos e pedras
de cantaria, o que exigia o trabalho especializado do canteiro, com
trabalhadores hábeis no corte de pedra, responsáveis também pelo
trabalho no túnel dos Piroleiros, aberto em rocha com 240 metros de
extensão. Nesta primeira seção da estrada, o rio Guararema, considerado “água dormente”
(por adquirir grandes proporções no períodos de cheia), foi atravessado
31 vezes e retificado 25.
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carro de passageiro corte interno |
Aberto ao tráfego em 1875, nos quilômetros
iniciais, até Jacareí, era utilizado para tração a locomotiva Baldwin e
carro de passageiros Jackson Sharp.
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caro de passageiro para bitola estreita |
O
trafego na estrada de ferro foi inaugurado em 1875-1876, mas desde 1874
temos moradores de vilas e freguesias trabalhando na estrada de ferro,
para terceiros que empreitavam trechos ou secções da ferrovia em
construção, assim como novos personagens que chegam à região. Os
imigrantes, italianos, portugueses, etc, recém-chegados, começavam a
aparecer nos registros, como Joseph Feudg, natural da Grã-Bretanha que
se obrigava “a prestar qualquer serviço braçal.”
Destacamos
como exemplo para tipificar estas novas relações que se estabeleciam,
as ocorrências ligadas a dois empreiteiros, João Weber e João Gonçalves
Leite em 1876. Neste ano é realizado um auto de corpo de delito em Artur
Bartleth ferido mortalmente por arma de fogo próximo à Freguesia da
Escada ”na empreitada de João Weber no lugar denominado cabeceira do Guararema.”
No
ano anterior (1875) um auto de exame cadavérico feito no alemão Jacob
Mantel, feitor de João Weber atribuiu a morte a suicídio tendo como
testemunha Pasquale Brocchini “natural da Toscana, Reino da Itália e morador do bairro do Biritiba.”
João
Gonçalves Leite, por sua vez, era outro empreiteiro que atuava nesta
primeira seção da construção da estrada de ferro São Paulo-Rio de
Janeiro, realizando contratos de “serviços na estrada de ferro” e de “rancheiro na estrada de ferro”, ou
seja, fornecia “o rancho”, a alimentação nos acampamentos de trabalho,
inclusive na empreitada de João Weber com quem estabeleceu contrato.
Com
a construção da ferrovia as relações sociais tornavam-se mais
complexas, alterando o convívio de pessoas cujos sentimentos e valores
vão se transformando gerando diferentes situações que espelham as novas
relações de trabalho.
Trajeto da ferrovia e locais de conflito
O
trajeto da ferrovia passava pela cidade de Mogi das Cruzes em 1875 e
seguia para Jacareí em meio a conflitos como os abaixo indicados,
ocorrido a meio caminho entre a fazenda Sabaúna, Freguesia da Escada e
um pequeno núcleo de habitação denominado São Benedito, perto dos
acampamentos de trabalhadores, em junho daquele mesmo ano:
"deu-se
um conflito entre alguns estrangeiros da estrada de ferro na empreitada
do Moreira, a quem do Rio Paraíba, com a família de Domingos Pinto, de
que resultou ferimentos no mesmo e fractura de um braço da sua mulher e
ferimento em seu genro...”
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em azul:provavel local dos conflitos.amarelo:empreitada |
O
relato dos acontecimentos que a seguir indicamos nos mostram as
mudanças nas relações sociais decorrente da chegada dos imigrantes ou
dos "estrangeiros" e como a população local sente desrespeitadas as
tradições e cultos locais. Veremos como imigrantes, no caso,
portugueses, trabalhadores da ferrovia agridem com gozações, valores e
tradições que são preservados pelos moradores da região e como estes
reagem resultando em ocorrências policiais. Longe de serem casos
triviais estes eventos evidenciam as relações cotidianas e suas
alterações.
O inspetor de quarteirão que relatava os fatos, explicava que a família de Domingos Pinto possuía “casa de negócios na linha férrea”.
Instaurou-se
inquérito policial por atos de desrespeito à família, com a realização
de exame de corpo de delito nas vitimas, tendo sido ouvidas três
testemunhas.
A primeira, Bernardino, negociante, morador na Freguesia da Escada disse ser primo irmão da ofendida “estava
ele depoente assistindo a festa de São Benedito no bairro da Paraíba e
observou um grupo de portugueses trabalhadores no serviço da estrada de
ferro do Norte a cargo do Moreira e estes portando-se de modo
inconveniente e gracejando com famílias e com o santo de devoção, ele
depoente já previa algum acontecimento como de fato posteriormente se
deu...”
A família fora atacada por homens que exerciam o oficio de “canteiro” e o depoente dizia saber que os agressores ”foram
despedidos do serviço do Moreira, por este subempreiteiro, e viu ele
depoente, os mesmo na cidade de Jacareí, onde se acham trabalhando nas
obras do cemitério.”
Havia
mais duas testemunhas no inquérito: a primeira, um professor público de
primeiras letras na freguesia da Nossa Senhora da Escada e a segunda um
morador de um bairro rural denominado Itapetí. Ora, qual a razão da
agressão?Uma brincadeira com o culto de São Benedito.
Na
região havia uma capela voltada para o culto de São Benedito que
segundo tradição oral da região teria sido erguida com dinheiro de uma
ex-escrava e de habitantes locais perto do rio Guararema. Luís da Câmara
Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro define São Benedito como patrono dos africanos que ” em seu louvor celebravam festas religiosas, em que se exibiam diversões profanas ' e citando a cidade de Cunha, no Vale do Paraíba, São Paulo, diz que 'persiste a crença de o santo ter inventado a dança Moçambique tão popular na região'e que ' São Benedito era trabalhador na roça e para descanso, ele inventou a dança de moçambique”.
A
chegada do trem alterou o ritmo de uma sociedade, trazendo a
possibilidade de levar o que era produzido na terra e abastecer os
centros urbanos distantes com produtos agrícolas.
O
caminho inverso também se tornou realidade, ou seja, da cidade para o
campo, onde eram anunciadas viagens nos jornais em direção ao “campo”,
os “pic-nics” em moda na Europa. A “Escola Alemã” promoveu um “passeio campestre”,
por via férrea, para Guararema em 1884 e Jacareí em 1885, sendo que o
local do pic-nic se localizava junto às margens do rio Paraíba.
O tunel dos Piroleiros
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tunel dos piroleiros |
Hoje conhecido como túnel das piluleiras, no século XIX foi grafado como tunel dos piroleiros,
palavra portuguesa (hoje fora de uso e não dicionarizada), usada por
exemplo nas atas da Câmara Municipal de São Paulo para designar pessoas
ligadas ao comércio de vinho no século XVI, e atualmente em Portugal
(com poucas ocorrências), para se referir a brincadeira, avacalhado, etc
(por exemplo, na juventude ‘Santo Antonio era um santo piroleiro’).
Igualmente notável é a origem espanhola do termo apontado pelos
historiadores Luis Felipe de Alencastro e Carlos Lessa, que atribuem à
palavra peruleiro (séculos XVI e XVII), a prática de comérco entre portugueses e espanhóis, entre Brasil e baixo Peru.
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tunel dos piroleiros |
Com
o início do transporte ferroviário a construção de túneis se tornou
importante como solução de engenharia para transpor obstáculos.
Neste
tipo de construção Portugal teve concluído o túnel Chão de Maças em
1862 com 650 metros de extensão, e mais tarde (1889) o túnel do Rossio
com 2613 metros atravessando a cidade de Lisboa
É
perfeitamente justificável que trabalhadores portugueses fossem
designados para seções da obra que apresentassem a dificuldade na
abertura de tuneis.
Piroleiros, palavra portuguesa ou dialeto da galia segundo alguns dicionarios,
mostra a presença de trabalhadores imigrantes na região que deixaram sua marca na denominação do tunel.
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tunel dos piroleiros desativado ao lado do traçado utilizado hoje |
Para saber mais
Alencastro, L.F. (2000). O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, pg. 110.
ARQUIVO HISTÓRICO DE MOGI DAS CRUZES. Inquéritos policiais, autos criminais, 1875.
NANNI, Angelo E. Nascimento Nanni. Entre o sonho e a realidade: a constituição do núcleo colonial de Sabaúna. Mogi das Cruzes, SP: Dialética Cultural Editora, 2012.
LESSA, Carlos. O Rio de todos os brasis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, pg. 32-34.
Fonte das imagens
Railroad Museum of Pennsylvania,
O novo mundo, http://memoria.bn.br/DocReader/DocReade,
http://www.estacoesferroviarias.com.br/sp-obrasdearte/tunelpiruleiros.htm
mapa http://bndigital.bn.br/