Entrada do canal de Bertioga e os prédios da Armação das Baleias. |
Atividade conhecida
e praticada em Portugal, por exemplo nos Açores do século XVI, a
pesca da baleia encontrou, em parte do litoral do Brasil, um local
para a instalação das armações baleeiras, “industria” de
pesca, de extração de óleo, utilizados como lubrificante, sabão,
cera de velas, óleo para iluminação, sendo utilizado na iluminação
pública em oratórios nas esquinas de cidades como o Rio de Janeiro
colonial e processamento de muitos outros produtos vindos das
baleias.
Ao
contrario do que muita gente pensa, a História do Brasil Colonial
não se resume só a senhores de engenho e cana-de-açúcar da
distante região Nordeste ou o ouro das Minas Gerais, antes, a terra
que se oferecia para a exploração era desconhecida e as certezas de
um empreendimento que apresentasse lucro para Portugal caminhava ao
lado das incertezas e dúvidas de um lugar desconhecido, onde o
fantástico fazia parte da explicação do mundo real, como na
narração de Frei Vicente do Salvador em 1627 que descrevia o novo
mundo : “ Há
muitas mui grandes baleias, que no meio do inverno vem a parir nas
baías, e rios fundos desta costa (…) Há também homens marinhos,
que já foram vistos sair fora da água após os índios, e nela hão
morto alguns, que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os
olhos e nariz, por onde se conhece, que não foram tubarões, porque
também há muitos neste mar, que comem pernas e braços, e toda a
carne.”
Ainda
é Frei Vicente que traduz a violência da pesca com imagens fortes
como “sangue cobre o sol, nuvem vermelha e mar vermelho”, quando
conta detalhada descrição da pesca na Bahia, no início dos anos
1600 :“o padre revestido benze as lanchas, e todos os
instrumentos, que nesta pescaria servem, e com isto se vão em busca
das baleias, e a primeira coisa que fazem é arpoar o filho, a que
chamam baleato, o qual anda sempre em cima da água brincando, dando
saltos como golfinhos, e assim com facilidade o arpoam com um arpéu
de esgalhos posto em uma haste, como de um dardo, e em o ferindo e
prendendo com os galhos puxam por ele com a corda do arpéu, e o
amarram, e atracam em uma das lanchas, que são três as que andam
neste ministério, e logo da outra arpoam a mãe, que não se aparta
do filho, e como a baleia não tem ossos mais que no espinhaço, e o
arpão é pesado, e despedido de bom braço, entra-lhe até o meio da
haste, sentindo-se ela ferida corre, e foge uma légua, às vezes
mais, por cima da água, e o arpoador lhe larga a corda, e a vai
seguindo até que canse, e cheguem as duas lanchas, que chegadas se
tornam todas três a pôr em esquadrão, ficando a que traz o baleato
no meio, o qual a mãe sentindo se vem para ele, e neste tempo da
outra lancha outro arpoador lhe despede com a mesma força o arpão,
e ela dá outra corrida como a primeira, da qual fica já tão
cansada, que de todas as três lanchas a lanceiam com lanças de
ferros agudos a modo de meias-luas, e a ferem de maneira que dá
muitos bramidos com a dor, e quando morre bota pelas ventas tanta
quantidade de sangue para o ar, que cobre o sol, e faz uma nuvem
vermelha, com que fica o mar vermelho, e este é o sinal que acabou,
e morreu, logo com muita presteza se lançam ao mar cinco homens com
cordas de linho grossas, e a atracam, e amarram a uma lancha...”
Neste
mundo, apesar dos perigos imaginários dos “homens
marinhos” e outros mais reais
da atividade de
colonização, estabeleceu-se neste início de século XVII o
monopólio real de pesca da baleia e arrendamento do direito de pesca
para particulares sob a forma de contrato e desta maneira parte do
litoral brasileiro apresentou a ocupação com a armação de baleias
nas capitanias do Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, nesta
ultima na ilha de São Sebastião, Santos e Bertioga.
A armação das
baleias de Bertioga foi erguida junto ao Forte São Felipe, na Ilha
de Santo Amaro, hoje no território do Guarujá, ficando na trilha
que parte da área de desembarque da balsa quando hoje se cruza o
canal no sentido Bertioga – Guarujá.
No século XVIII a
armação das baleias de Bertioga assim como outras no litoral também
serviu para a defesa dos domínios portugueses como podemos ver na
instrução militar de 14 de janeiro de 1775, para o Governador da
Capitania de São Paulo, onde este deveria informar-se do número e
qualidade de embarcações utilizados na pesca pelos contratadores de
baleias de Santos, Bertioga e Santa Catarina, devendo aprontar as
embarcações assim que fosse requisitado, “não só porque o
mesmo contrato é o que tem maior interesse na preservação e
defensa dos domínios meridionais do Brasil, porque sem elles não
pode a pesca das baleas subsistir de alguma sorte naqueles ferteis e
abundantes sítios; mas porque o dito incômodo e prejuizo, sendo de
particulares, não devem ser atendidos, quando se trata de causa
pública.”
Segundo
a historiadora Miryam Ellis o estabelecimento de Bertioga contava em
1789 com uma capela, um sobrado, armazém, casa dos tanques de
azeite, o engenho, três casas para amarras e lanchas, casa dos
feitores, casa dos baleeiros, trinta senzalas para escravos, fonte de
água, cais de pedra, casas dos baleeiros da barra, caldeiras e
instrumentos de pescas, ferragens de variado uso, objetos de bronze,
ferramentas de carpinteiro, tanoeiro que fabricava barris ou tonéis
para embalar, conservar e transportar mercadorias, ferramentas do
calafate que era o artesão especializado em vedar ou calafetar as
juntas entre as tábuas de que era feita os barcos, três saveiros,
quatro lanchas, duas canoas grandes, onze pequenas e sessenta e três
escravos.
Pelos
itens constantes no inventário de 1789 podemos ter ideia de como era
realizado o trabalho na armação, a pesca, extração e produção
de óleo e outros produtos.
As
embarcações eram guardadas em construções próprias e descendo
pelo cais de pedra a pesca era realizada por baleeiros assalariados
que incluía um arpoador, remadores, um homem para cuidar do leme e
mesmo por pequenos agricultores da região, sendo que as vezes,
segundo Miryam Ellis, eram coagidos a força devido o perigo da
pesca, pois, não era raro a morte na tripulação do barco que em
geral ficava três meses arpoando. Utilizavam os saveiros e lanchas,
servindo os barcos menores como apoio ou para arpoar baleias mais
perto da costa e dependendo do estado das embarcações entraria os
serviços do carpinteiro ou do calafate, responsável pela
impermeabilização e calafetação das juntas dos barcos para a
perfeita navegação.
Arpoada,
a baleia era arrastada até a praia da armação e ali começavam os
trabalhos de extração, a gordura retirada e levada ao engenho e
derretida em tanques. Os escravos trabalhavam no engenho, nos tanques
de azeite, na extração das barbatanas e cerdas. Os serviços do
tanoeiro eram utilizados na confecção de pipas para armazenar e
transportar o óleo conseguido que girava em torno de 12 a 20 pipas
por baleia (se utilizarmos a pipa da região do Douro em Portugal
como unidade de medida, temos 1 pipa = 550 litros ).
Morando
na armação, responsável pela condução dos trabalhos desde a
pesca até o processamento do óleo, ficavam os feitores, que para
José Bonifácio de Andrada e Silva eram estúpidos, autoritários,
pretensiosos e “inteiramente ignorantes na arte de pescar
baleias” por insistirem em arpoar filhotes de baleia, (os
baleotes de mama) e as mães. Estes homens conduziam “a
perniciosa pratica de matarem os baleotes de mama para assim arpoarem
as mães com maior facilidade. Tem estas tanto amor a seus filhinhos,
que quase os trazem entre as barbatanas para lhes darem leite e se
por ventura lhes matam, não desemparam o lugar, sem deixar
igualmente a vida na ponta dos arpões:é seu amor tamanho, que
podendo demorar-se no fundo da água por mais de meia hora sem vir
respirar acima e escapar assim ao perigo, que as ameaça, folgam
antes expor a vida para salvarem a dos filhinhos, que não podem
estar sem respirar por tanto tempo. Esta ternura das mães facilita a
pesca (…) mas trara a ruína total de tão importante pescaria.”
Além do
óleo que abastecia o mercado interno para a iluminação, o azeite
e a barba de baleia figuravam na lista de produtos exportados em 1777
e segundo o professor Carlos Cordeiro da Universidade dos Açores
(Portugal), especialista em questões comerciais entre Açores e
Brasil, estes produtos também lá chegavam e faziam parte do
quotidiano açoriano.
Entre
1812 e 1819 os viajantes ingleses John Mawe e Robert Southey passaram
por Bertioga observando e relatando o que viam. Southey teceu um
breve comentário, restrito a “onde os baleeiros tem um
estabelecimento”, porém as
descrições de John Mawe são mais apuradas, como as de um
viajante-reporter, que nos leva a conhecer o lugar: “...resolvemos
não aguardar navio em Santos, mas seguir para o Rio de Janeiro numa
canoa, margeando a costa. Alugada uma, embarcamos, depois de remarmos
toda a noite, num estreito que separa a Ilha de Santo Amaro, que
constitui uma das passagens para Santos, por mar, chegamos, ao nascer
do sol, a Bertioga, situada no extremo norte daquela ilha. É pequena
a cidade, com algumas construções toleráveis e boas, erguida por
conveniência do Capitão-mor e seus ajudantes, que superintendiam um
estabelecimento de pesca, similar ao de Santa Catarina, pertencente a
mesma companhia, mas muito inferior em tamanho e capacidade. Em
ambos, os negros mais hábeis ocupavam-se no preparo de barbatanas
de baleia, produto de considerável comércio, …, apanham-se,
anualmente, grande número de baleias. Os edifícios para derreter a
gordura e armazenar o óleo estão convenientemente instalados.”
Apesar da armação continuar em funcionamento, a verdade é que os
contratos haviam sido extintos em 1801 por alvará real e a pesca
entrado em decadência. Podemos ler nos relatos de John Mawe que uma
mesma companhia atuava tanto em Bertioga como em outros lugares, mas,
neste mesmo século XIX a pesca indiscriminada e predatória da
baleia levou a decadência das armações, estagnação da vila e um
mergulho no isolamento.
A vila de pescadores, no entanto, sobrevivia com a pesca farta de
outros tipos de peixe, por exemplo, a tainha, a cultura de frutas, um
pequeno comércio se instalara e abastecia o lugar que no início do
século XX viu a inauguração em seu território da usina
hidroelétrica de Itatinga, em 1910, para gerar energia para o porto
de Santos, porém, continuando a vila sem eletricidade, tendo a luz
dos pequenos lampiões a querosene por iluminação.
Nos
anos 30 a vila é redescoberta e sua importância histórica
ressaltada por Mário de Andrade que viajara para justamente conhecer
os marcos históricos e dizia:”As
duas pensões não tinham mais quartos, com veranistas. Afinal fomos
dormir numa casa de taipa dum tabaréu que nem iluminação de vela
tinha ...”
A energia elétrica chegou em meados da década de 60 com a expansão
dos loteamentos e parcelamento do solo e de lá até hoje muita coisa
mudou e a cidade convive com uma ocupação indiscriminada e
predatória. Sem uma normatização adequada que regulamente essa
ocupação, ação do poder público para conter a especulação e
conservar o patrimônio cultural de Bertioga, corre-se o risco de
repetir o caso e ocaso da armação das baleias.
Fonte das imagens
Mapa da fortaleza de Bertioga que D Luis mandou fazer 1775 Biblioteca Nacional
Walfang_zwischen_1856_und_1907
Whale Fishing Fac simile of a Woodcut in the Cosmographie Universelle
of Thevet in folio Paris 1574
James Cook-whaling
Para saber mais:
Os livros 1 e 2 podem ser encontrados no Arquivo Histórico de Mogi
das Cruzes
1)
ELLIS, Myriam. Aspectos da pesca da baleia no Brasil colonial II.
Revista de História.
São Paulo, v. XVI, n.º 33, p 149-175, jan, 1958a.
- ELLIS, Myriam. Aspectos da pesca da baleia no Brasil colonial III. Revista de História. São Paulo, v. XVI, n.º 34, p. 379-424 , abril, 1958b.
- ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1969
- MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. B.H./S.P. Editora Itatiaia/EDUSP, 1978, pag.75