Serra do mar, Bertioga, Mogi das Cruzes |
Para
quem olha no sentido litoral – planalto, a Serra do Mar parece uma
verdadeira muralha, só permitindo ultrapassá-la através de gargantas por
onde passaram os primeiros colonizadores seguindo as trilhas indígenas.
Esta característica topográfica da Serra do Mar é apontada por Dinah Silveira de Queiroz (autora do romance A Muralha),
ao retratar, através da personagem Cristina (na minisérie da TV nome da personagem Beatriz) - recém chegada de Portugal
no início da colonização do Brasil - a dificuldade de se locomover de
São Vicente aos Campos de Piratininga (São Paulo). A paisagem assim
descrita, compõem-se de um “... desfile tenebroso de montanhas, que se
encostavam erectas umas às outras, numa procissão de guardas
gigantescos...” configurando uma “enorme muralha verde-escuro barrando o
horizonte ... mais alto do que passarinho pode voar!” (Queiroz, 2000
:20).
Mesmo
com essa defesa natural, alguns caminhos de acesso litoral-planalto
preocupavam as autoridades portuguesas no sentido de ataques ao litoral,
por exemplo Bertioga ou Santos, e em seguida à cidade de São Paulo.
É
assim que, a 10 de março de 1777, uma segunda feira, após enchentes que
destruíram na semana anterior, os caminhos e pontes dos arredores da
vila de Mogi das Cruzes, chegava o aviso endereçado ao capitão mor,
dando conta que a armada espanhola atacava a ilha de Santa Catarina e
que poderia se dirigir e desembarcar na cidade de Santos.
As
disputas entre Portugal e Espanha já ocorriam há algum tempo. Através
do século XVIII, as fronteiras do território brasileiro foram objeto de
constante discussão entre Espanha e Portugal. Possuidoras de territórios
coloniais que outrora haviam sido demarcados e divididos pelo Tratado
de Tordesilhas em 1494, passados dois seculos e meio, novas demarcações
coloniais se impunham em função de andanças pelo sertão, descoberta de
minerais preciosos, estabelecimento de rotas, fundação e fixação do
povoamento.
Sucintamente,
as questões de limites entre as colônias de Portugal e Espanha, que
impunham discussões, foram abordadas nos seguintes tratados: Tratado de
Lisboa (1681), Tratado de Utrecht (1715), Tratado de Madri (1750) que
redefiniu efetivamente as fronteiras entre as Américas Portuguesa e
Espanhola, anulando o estabelecido no Tratado de Tordesilhas e o Tratado
de Santo Ildefonso (1777) que confirmou o Tratado de Madri e devolveu a
Portugal a ilha de Santa Catarina.
Desde
pelo menos o início do século XVIII com as descobertas auríferas em
Minas Gerais e logo a seguir as minas de Cuiaba e Goias, foram os agentes
da colonização, tais como, bandeirantes, missionários, comerciantes,
aventureiros, funcionários ligados a Coroa, povoadores, que penetraram o
território ocupando terras e provocando uma nova realidade de ocupação
territorial.
Elaborado e enviado em 1749 para Madri, o Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional ou Mapa das Cortes,
estabelecia e ampliava os novos limites territoriais do Brasil e serviu
para o acordo diplomático assinado em 1750, quando os limites foram
alterados pelo Tratado de Madri, que em seu paragrafo III dizia : “pertencerá
à Coroa de Portugal tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ...
como também tudo o que tem ocupado no distrito de Mato Grosso, e dele
para parte do oriente, e Brasil...”
Mapa da Cortes:redefinição de territórios |
As
expedições,oficiais ou não, saiam em direção ao sertão para
conhecimento, ocupação e povoamento, o que exigia o recrutamento de
homens nas vilas e em 1767, vinte e quatro homens da vila de Mogi eram
escolhidos para fazer parte da primeira expedição em direção aos rios
Ivai e Tibagi, nos sertões do atual Paraná. Ao todo foram onze campanhas
para o sertão entre 1768-1774, com mortes e deserções.
As
diferenças entre Portugal e Espanha continuavam e nova tentativa era
feita com a proposta inicial da Espanha em julho de 1775 para definir de
vez a fronteira das colonias na América do Sul. As negociações eram
tensas, ora com avanços, ora com recuos e entravamos no ano de 1777
quando uma carta chega a vila de Mogi das Cruzes, após o emissário
enfrentar as dificuldades dos caminhos inundados: ”Como
a armada espanhola se acha atacando a Ilha de Santa Catarina, se acaso
não estiver já senhora dela, e ser provável que o inimigo venha a esta
capitania e especialmente desembarcar em Santos: para
evitarmos que possam penetrar para dentro da capitania, devemos fazer
toda a resistência no cume da Serra de ambos os cubatões, indo a eles
todos os auxiliares e ordenanças que tenham armas e possam pegar nelas; e
como é preciso ali sustentá-los, assim como tenho mandado fazer
provimento de farinha e feijão no cubatão de Santos, se faz
indispensável fazer-se o mesmo no dessa Vila, pelo que ordeno que compre
toda farinha e feijão mandando conduzir para o dito lugar, em alguma
casa que exista ou fazer um rancho para acondiciona-la e defender do
temporal. E por vossa merce de acordo a esse Povo, para que a primeira
ordem acuda todo a referida Serra, onde cada um ao modo, com que os
honrados Paulistas tem por tantas vezes dado nos Espanhois, o façam
agora...na certeza de que tudo o que apanharem aos inimigos, será para
eles...”
Tracado original Mogi-Santos realçado |
Nas cartas dirigidas a Mogi que antecederam este episódio é grande a menção e procura de desertores, sendo
que a incorporação forçada para expedições militares causava a fuga
“para o mato” e talvez explique o recurso usado ao chamar os “honrados
paulistas” ou referir-se a “antigos paulistas destruindo inimigos”,
procurando assim, com a invocação da memória de um passado paulista, não
mais existente, onde figurava idealizado, o brio, a honra, a coragem e,
a partir de uma situação específica, passava-se a construir e
sedimentar o apelo à união. A realidade era bem diferente, pois, não
eram poucas as vezes, ou casos como o de Luiz Mendes, que talvez ilustre
uma situação que não era única, antes, bastante comum em Mogi e outras
regiões da capitania: ”vamos
a prisão de Luiz Mendes e dos Desertores que o acompanham na vida que
levam pelos matos, rebeldes ao Serviço, as Leis, e à Sociedade Humana...
convoque ordenanças bastante e auxiliares... e resistindo eles, poderá a
mesma tropa segurar lhes com tiros, para virem vivos receber as penas
que merecem.”, ou para o juiz ordinário de Mogi “visto
os levantados desertores e criminosos terem se aquilombado nesses matos
com armas e resolução de resistir... se não quiserem se render se lhes
atirem pelas pernas.”. O
mesmo juiz ordinário da vila de Mogy das Cruzes recebia novamente
ofício com a ordem de prender Luiz Mendes e seguidores, não só por ter
tentado atirar duas vezes no capitão do mato que o perseguia mas por ter
dito do governador da capitania que gostaria de pegar-lhe a “Cabeça para fazer de Cuia..”, recomendava-se prender os insolentes que infestam esses matos, segurando-se, se resistirem com tiros pelas pernas “porque desejo apanhá-los vivos”, dizia o governador.
Estes
habitantes, rebeldes aos ditos reais impostos por Portugal à colônia,
incompreendidos em seus quereres e falares (pois muitos, se não todos,
sequer falavam a língua portuguesa, mas a Língua Geral, o Nheengatu dos
Tupi e de Anchieta), terminaram por fornecer o toque final à composição
étnica e cultural do Paulista, o mameluco descendente de índios e
portugueses, o antigo Bandeirante, que agora vai se confinando nas
matas, vai se "aquilombando", rompendo as ligações com a metrópole e
criando suas próprias, mais individualizadas, mais estreitas. Reproduzem
a antiga grande família nuclear tupi, com a troca de serviços e
obrigações, o mutirão, o compadrio e o cunhadismo, presentes ainda hoje
no que se reconhece como bairro, o espaço social por excelência, e
depois, muito depois, espaço territorial.
Quanto
à questão do abastecimento (farinha e feijão), o episódio gerou uma
intensa troca de correspondência entre as capitanias de Minas, São
Paulo, e os capitães das vilas no caminho Serra da Mantiqueira – São
Paulo, para montar uma rede de transporte para o abastecimento das
tropas, devendo os alqueires de farinha serem transportados pelo menos
até a vila de Mogi, e daí para São Paulo, como dizia o governador da
capitania: ”donde farei transportar em algumas bestas que puder conseguir, e as costas de Índios e escravos.” ou “por rio em canoas.”
Em
1º de outubro de 1777 foi assinado o tratado de Santo Ildefonso, entre
Portugal e Espanha, para encerrar a disputa entre ambos. A Espanha coube
territórios que hoje fazem parte do Rio Grande do Sul e Uruguai e
Portugal teve devolvida a ilha de Santa Catarina que fora ocupada poucos
meses antes como vimos.
Alqueire/litro
O
alqueire era uma antiga medida de capacidade usado para cereais, mas de
volume variável. Na região de Lisboa equivalia a 13,8 litros, no Brasil
valia 12,5 litros. Também era a medida de um saco: seis alqueires
faziam um saco = 75 litros = 75 quilos
Definições de cubatão
Pequena elevação na base de uma cadeia de montanhas
Habitação rústica tipicamente africana, geralmente de telhado cónico coberto de folhas ou palha, o mesmo que choça.
Do africano kubata = rancho, mais o aumentativo ão = rancho grande
Para saber mais
FERREIRA, Mário Clemente. O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia. Varia hist., Belo Horizonte, v. 23, n. 37, June 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. php? Acesso Junho 2012.
HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. A época colonial, volume I, São Paulo: Difel,1972.
QUEIROZ, Dinah Silveira de. A Muralha. São Paulo: Record, 2000.
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