Senhor Luis:construtor de viola em Santa Isabel. |
Frequentemente
escutamos que a viola de dez cordas é o instrumento próprio para
tocar “música de raiz”. Mas o que é essa mal definida “música
de raiz”? Talvez possamos dizer que é a música produzida no
ambiente rural, nas trilhas e estradas do sertão.
E
por que a viola de dez cordas é o instrumento próprio para tocá-la?
Porquê
esteve presente no Brasil desde os primeiros séculos de colonização
e está presente em praticamente todo o território brasileiro, pois,
a viola com dez cordas de aço é conhecida por ser do tipo paulista,
ou goiana, ou cuiabana, ou litorânea, ou nordestina.
A
viola de dez cordas ou cinco cordas duplas existente no Brasil está
diretamente ligada às violas tradicionais portuguesas, como a toeira
da
região de Beira Litoral, viola com doze cordas “de arame”; a
braguesa,
da
região do Minho, com cinco cordas duplas, a mais importante das
violas tradicionais portuguesas, usada em bailes de terreiro,
romarias e festas;
amarantina,
do
Douro Litoral, semelhante a braguesa com cinco cordas duplas; a
beiroa
da
Beira Baixa, também com cinco cordas duplas de arame, tem além
disso, duas pequenas cordas na parte inferior do braço; a
campaniça
do
Baixo Alentejo, maior que as outras este tipo possui quatro cordas
duplas e uma tripla.
Com
as navegações e a expansão portuguesa, a viola ganhou os mares,
primeiro nos Açores com a viola
da terra ou dos Açores,
aparentada da viola amarantina e depois o Brasil onde as violas de
arame penetraram as regiões nas mais diversas formas de diversão –
devoção. Festas de terreiro, cantos de trabalho, culto a São
Gonçalo do Amarante, Divino Espírito Santo, Folia de Reis, São
Benedito e variadas danças (cururu, catira, cateretê).De fácil
transporte, as violas acompanharam os homens entrados pelo sertão e
qualquer um com bom ouvido, poderia tocá-la de golpe
ou de rasgado,
apenas com o ritmo da mão direita.
Dada
as características da colonização, as violas irão aportar no
litoral e mais tarde entrar para o interior da colonia. Em Salvador,
por volta de 1682, o pesquisador José Ramos Tinhorão aponta que o
poeta Gregório de Matos, conhecido por Boca do Inferno pelo conteúdo
de suas poesias, andava sempre acompanhado de uma viola e suas
poesias satíricas de conteúdo do dia a dia foram escritas não para
serem lidas, mas cantadas e o próprio poeta diz “eu
tanjo rasgado...não por pontos”,
o
que significa “eu toco rasqueado e não ponteado” que são
maneiras de tocar viola, tanto aqui no Brasil como em Portugal.
Fosse
em cidades, arraiais, vilas, freguesias ou nas estradas com pouso de
tropeiros, a viola esteve presente, como nas tropas que passavam por
Mogi das Cruzes no início dos anos 1800 em direção ao Vale do
Paraíba - Rio de Janeiro onde um tropeiro cantador de nome Cantante
estava na lista de pagamentos do dono da tropa ou no pouso da Escada,
onde no início dos anos 1830 um juiz advertia algumas mulheres a não
fazerem “ajuntamento
de pessoas em sua casa, viver honestamente a fim de não perturbarem
o sossego público com batuques e viola”.
Essas
andanças do tropeiro foram confirmadas para o sociólogo e estudioso
do folclore, Alceu Maynard de Araújo por seu avô, tropeiro que
desde 1870 esteve nas trilhas do Rio Grande do Sul a São Paulo e
afirmava que nunca vira seus camaradas viajarem sem a viola, que
carregavam dentro de um saco.
Esse
instrumento, que acompanhou os homens desde o Brasil Colonia, hoje
como afirmação de sua presença, exibe 751.000 resultados em busca
na internet para as palavras “viola
caipira”
e
21.000 vídeos no youtube para a mesma expressão. Mostra acima de
tudo, o vigor de um instrumento com características humanas, afinal
as partes de uma viola são: o braço,
boca, cintura, orelha (as
cravelhas para afinar), costa,
pestana
e
fica doente, resfriada e rouca.
Quais
seriam as características desse instrumento que se identifica com o
tocador?
Formado
pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tendo como
professor o etnólogo Herbert Baldus, Maynard De Araújo escreveu em
1959 “Viola Cabocla”, um dos primeiros trabalhos dedicados a este
instrumento, onde faz um extenso estudo sobre as características e
construção da viola, que naquele momento já se tornava “artigo
industrial”, produzido em série. Se de um lado mostrava-se como
mercadoria com preço mais acessível, por outro ia se fazendo raro
encontrar um “fazedor de violas”.
Mesmo
com dificuldade de encontrar artesãos dedicados a fabricação da
viola, Maynard Araújo conseguiu em vinte e quatro anos de pesquisas
encontrar centenas de informantes, dentre eles um fabricante de Santa
Isabel.
As
violas feitas de pinho, pinho de riga, cedro e jacarandá,
comportavam oito tamanhos que se ajustavam ao gosto do tocador, no
entanto, o informante de Santa Isabel dizia fazer somente “de
três tamanhos”,
pequeno, médio e grande, sendo o machete
ou
machetinho
pequeno
e assemelhado ao cavaquinho, a média,
viola mais procurada e comum e a grande
com um
metro de comprimento e doze cordas.
Semeando
sons no Itapeti
Chegados
na pequena oficina do senhor Luis em Santa Isabel, interrompemos uma
outra atividade sua que, além de construir violas, fazer consertos
em peças de madeira e afiar ferramentas de metal, estava a construir
um pilão escavado em tronco de madeira tirada da mata.
Na
oficina há uma pequena bancada de trabalho com uma morsa, esmeril,
ferramentas diversas para trabalhar com madeira, diversas violas
prontas e outras semiprontas.
O
senhor Luis conta que existiam em Santa Isabel três fazedores de
viola, o Lourenço Carneiro, parente de sua esposa, Claudino Chaves e
Israel.
Herdeiro
de Lourenço Carneiro, que provavelmente é o mesmo artesão citado
por Alceu Maynard de Araújo, o gosto pelo instrumento começou cedo:
Quando
tinha entre 10 e 11 anos, meu pai, tinha uma viola muito boa, que
ajudava a dançar São Gonçalo. Quando eu ia mexer na viola, meu pai
ralhava: Não mexe na viola, vai estragar... Aí eu pegava e tornava
a guardar a viola e saia chorando: ainda vou fazer uma viola.... E
meu pai retrucava. Vai fazer uma viola porcaria nenhuma... Lá em
Santa Isabel, viola, só mesmo o Lourenço Carneiro faz...
Pois
é, o tempo foi passando, cresci, exerci outros ofícios, mas a idéia
ficou gravada! Só depois dos sessenta anos e que comecei a fazer
violas.
Apŕendi
a consertar instrumentos, as medidas e escalas, sempre procurando um
jeito de aplicar melhor os ensinamentos que outros me passavam.
A
viola, eu comecei a fazer há mais de vinte anos, quando os violeiros
(os fabricantes) mais antigos já eram falecidos e a maior parte das
violas encontradas, de fabricação industrial.
Ensinei
algumas pessoas a fazê viola, mas é um trabalho muito difícil de
se fazer, mesmo marceneiro "oficial" tem dificuldade. Eu
mesmo, não sou marceneiro, sou um aventureiro. Pego um trabalho e
vou executando ali, pego e faço, sem desenho.
A
viola começa com a madeira da frente, as laterais e fundo são
cozidas e modeladas na forma. Depois faz o braço, que é encaixado e
aí amonta ela. Primeiro a frente, depois as costas e depois vai
trabalha com o braço.
Nas
violas feitas pelo senhor Luis, chama atenção o desenho que
circunda a boca da viola e é um trabalho tão bem feito, uma
verdadeira “marchetaria cabocla” que chamou a atenção de um
norte americano, que chegou a comprar algumas violas para estudar e
tentar compreender os delicados traços do marcheado existente nas
violas de Seu Luís. A dificuldade foi que o americano tentou
reproduzir este marchetado com máquinas e gabaritos industriais, o
que impossibilitou a reconstrução dos motivos encontrados nestas
violas. Só muito mais tarde, é que se deu conta de que o “segredo”
do marchetado encontrava-se num trabalho meramente artesanal e de
filigrana. Seu Luis se diverte ao mostrar a ”máquina” que
consiste num pequeno pedaço de madeira com vários pregos onde
pacientemente corta com canivete, pequenos e sofisticados pedacinhos
de madeira preta e outras brancas que irão formar o desenho, que
compreendem a “assinatura” do construtor da viola (como uma
impressão digital, só existe aquela), atestando a ligação de seu
Luis com Lourenço Carneiro já que a assinatura da viola é a mesma.
Quando prontos, estes pedacinhos serão colados de forma a
circundar a boca da viola.
Fiel
a mesma técnica de Lourenço Carneiro, seu Luís fabrica três tipos
básicos de viola, o que novamente coincide com a pesquisa de Maynard
que reporta a existência de 3 tipos de violas isabelenses ou
paulistas.
Perguntamos
se ainda recebe muitos pedidos para fabricar violas para a dança de
São Gonçalo. A resposta é dura: "O grande problema hoje é
que o povo, o devoto que Dança São Gonçalo, não tem mais dinheiro
para comprar uma viola. O caboclo quer pagar dez reais... Sabe o que
nós fazemo com dez reais? Eu não compro nem um surtido. Então o
que acontece com as viola? Vai prá fora... As violas senhor Luis
hoje podem ser encontradas em Minas, Nazaré Paulista, Atibaia,
Barretos, Igaratá, e algumas “semeadas” pelo Itapeti.
Eu
tenho mais ou menos uma duzentas violas feitas. A maioria tudo prá
fora. E é isso aí, a gente aperfeiçou, fazendo as viola comuns e
depois fazendo violas maiores.
Na
verdade é um trabalho manual, de madeira, sem nada de compensado. É
um serviço simples.
A
viola e as lendas
Viola
“pega” mau olhado, fica resfriada se guardar com as cordas
viradas para a parede.
Madeira
para viola deve ser cortada em meses que não tem R e em lua
minguante para não dar caruncho. Viola com caruncho é leprosa.
Viola
cura reumatismo e varizes.
O
violeiro para tocar bem deve pegar uma cascavel com a mão, retirar o
guizo da cobra e guardar na viola.
Outra
lenda que existe até hoje é a que fala do pacto que o violeiro faz
com o demônio para tocar bem e a respeito disto dizia o poeta
Gregório de Matos, em 1668 “...a
maior parte destas modas lhe ensina o demônio:porque é ele grande
poeta, contrapontista, músico e tocador de viola e sabe inventar
modas profanas, para as ensinar àqueles que não temem a Deus”.
Para
saber mais
NEPOMUCENO,
Rosa.
Musica
caipira. Da roça ao rodeio,SP:Ed.34,1999
TINHORÃO,
José Ramos. Pequena
história da música popular, da modinha a lambada, 6.
ed. São Paulo: Art.Editora.1991.
______.
História
social da música popular brasileira,SP:Ed.34,2002