As cavalhadas a beira da Estrada Imperial, a Santa Cruz e outros patrimônios
A
série Caminhos Antigos traz uma entrevista que
força-nos a olhar o patrimônio humano, por vezes chamado de patrimônio
histórico, arquitetônico ou outro nome e que estamos perdendo.
Ao
longo de uma conversa realizada a tarde, Dona Luiza revelou muitas
coisas de sua história, mas principalmente lembra do trabalho na terra ,
da venda dos produtos cultivados, devoções, enterros, brincadeiras, em
suma do saber e saber fazer do povo.
É
importante lembrar neste momento em que muito se discute o patrimônio
histórico na cidade, o primeiro projeto inovador de defesa do
patrimônio, elaborado por Mário de Andrade em 1936, o Serviço do
Patrimônio Artístico Nacional. Infelizmente este projeto não foi seguido
como deveria e somente nos dias hoje, como afirmou a revista Ciência e
Cultura (2006) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, “se
vem retomando o projeto original de Mário de Andrade de valorização não
só do patrimônio edificado mas também das culturas populares através do
chamado patrimônio imaterial”.
O projeto original de Mário de Andrade abrangia um conceito amplo de cultura ao definir “Arte
é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade
com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos
fatos”.Neste
sentido Mário pretendia registrar tudo, como por exemplo, as paisagens
trabalhadas pelo homem, a arquitetura popular, cruzeiros, capelas e
cruzes mortuárias de beira de estrada, música popular, contos,
histórias, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias,
provérbios, danças dramáticas, gravuras, mapas, livros impressos, etc.
Levando
em conta esses exemplos acima, podemos pensar em uma História das
paisagens, onde a natureza é passível de sofrer modificações pela
prolongada atividade humana e produção de instrumentos tecnicos que
garantem a existência humana, como é o caso do sítio São João,
patrimônio que jaz na estrada do Rio Acima e que foi objeto de estudos
realizados a pedido da empresa “Norfolk Distribuidora Ltda.”, em 2008,
para avaliação de importância cultural.Esquecido desde então, o sítio
São João ficava antigamente em área de produção de farinha de milho com
monjolos de pé e farinha de mandioca produzida nas “casas de farinha”
com moedor, prensa e possuia todo esse aparato técnico de tempos pré
industriais, indicativo do saber fazer do povo.
Exposta
ao tempo e intempéries, a prensa e o moedor foram resgatados por
iniciativa particular em 2011 e assim vamos tocando o nosso patrimônio
cultural, com atitudes pontuais e bem intencionadas de particulares,
enquanto esperamos a ação oficial cobrada varias vezes pela imprensa e
que não se resume em tombamentos temporarios, pois, afinal quase não há o
que tombar no sítio São João.
É desta riqueza de paisagens e costumes que nos conta Dona Luiza, nascida em Mogi das Cruzes, Bairro do Itapeti.
Nos
seus quase cem anos de vida, noventa e sete para ser exato, Dona Luiza
se lembra da construção da estrada Rio – São Paulo, trecho Mogi
Guararema em 1927 - 1928 , quando com enxadão os homens tiravam terra e
enchiam as carroças tocadas por burro.
Nesta
época de infância as brincadeiras no Itapeti eram pegar limão e usar
como bola, a peteca de palha de milho, as bonecas de pano feitas para si
e depois para os filhos, pois, carrinhos e bonecas não havia e faz uma
crítica velada ao consumo quando diz que hoje as crianças “tem brinquedos para jogar fora, mas no tempo que me criei não foi facil”.Com
sete anos ficou sem mãe, ressalta e sempre frisa que foi muito feliz,
mas sem esquecer a dureza daqueles tempos, pé no chão, vestido de chita.
Vida dura, porem tranquila, o que a assusta nos dias de hoje é a
insegurança, pois, nem de dia você pode deixar a casa aberta.
Dona
Luiza se lembra muito das modas de viola e dos desafios de verso com o
acompanhamento de viola, nas festas e nos casamentos e a diversão ficava
por conta deste instrumento junto da sanfona.Existiam bons violeiros,
entre eles o João Pituba (pituba significa folgazão) que era bom em
inventar modas, tocavam também a cana verde.
Região profundamente devota, o que se constata pelo numero de festas e capelas, diz que “toda a vida que eu me conheço por gente tinha”
o Divino, com pessoas durante o ano com bandeiras rodando pelas
redondezas, pedindo “esmola” para a festa que se realizava na cidade.
No
Itapeti as reuniões religiosas eram momentos em que as pessoas podiam
se encontrar, pois viviam em um bairro rural com característica de ser
disperso com vizinhos distantes, todos muito católicos e em toda encruzilhada tinha um Santa Cruz,
havia o terço e ladainha. Na quaresma a Via Crúcis, trajeto seguido por
Jesus carregando a cruz, era representado por quatorze estações
(etapas) em caminhada passando nas Santas Cruzes
espalhadas pela beira de estrada. Alguns padres dizem não saber porque
tanta Santa Cruz, mas Dona Luiza explica ser por uma extrema devoção, tinha muitas, hoje só a Cruz do Pito.
As
pessoas não vinham para a missa (na cidade) por ser difícil e longa a
caminhada, então faziam a reza, o terço, lá no Itapeti, com café com
farinha, café na tigela.O rezador era o Belo Sudário, depois Nhô Chico
Pinto.
No
Natal, momento maior do catolicismo, desciam a serra e vinham para a
cidade assistir a missa do galo, rezada a meia noite, na passagem do dia
vinte e quatro para vinte e cinco. Nos outros momentos do Natal só a
família.
Aqui
na cidade na capela da Santa Cruz, no alto da rua Ricardo Vilela, é
para onde vinham os corpos trazidos pelos caminhos da serra em padiola
ou na rede e ali assentavam porque não prestava descer corpo em qualquer
lugar da estrada. Da capela colocavam o corpo em caixão cedido pela
prefeitura e era carregado para o cemitério São Salvador em procissão. Você pode ver que aquela rua vai direitinho na porta do cemitério
diz Dona Luiza. Sobre este santuário dizia o jornal da cidade,em 1932,
que depois de terminada a Semana Santa, eram iniciadas as obras de
reconstrução da capela da Santa Cruz, que segundo “O Liberal“ era “...a
mais antiga demonstração de fé erigida pela população de Mogy das
Cruzes em tempos immemoriais. Depois de alguns anos em ruina, um grupo
de pessoas devotas da Santa Cruz e zelosas das tradições históricas
desta cidade tomou a peito a reconstrução da legendaria capella...”.Para o andamento das obras se receberia donativos em materiais e realizavam-se quermesses.
Em frente a Santa Cruz havia uma viela onde os cavalos ou tropas ficavam e ali trabalhava um ferrador.
Desciam para a cidade e no Largo Bom Jesus uma das primeiras paradas era no armazém do senhor Antenor de Souza Mello que era “um bom comprador”
dos produtos que traziam, cultivados no Itapeti:feijão, alho, milho,
batata, prosseguindo a venda em outros estabelecimentos da cidade.
Ainda
no Largo Bom Jesus lembra das cavalhadas, repetindo o quanto era bonito
e relembra outros lugares onde se davam as cavalhadas como o campo da
Iaiá, onde uma arvore muito grande servia para amarrar animais,também
no local em que começa a estrada do Beija-flor na altura de César de
Souza, do lado da serra e perto da capela de São Jorge havia um campo de
grandes dimensões que podia alojar muitos animais para as corridas,
ficando este local junto a Estrada Real que chegava em Mogi e que ainda
existe exatamente este trecho, saindo da estrada do Beija flor vai dar
no fundo da Casa dos Assados no Botujuru.
Havia diferença entre as cavalhadas corridas no Largo Bom Jesus e estas outras em função do espaço de corrida dos animais. Tinha
bastante gente na cavalhada, era em reza do ano, mês de maio tinha reza
todo sábado em um lugar ou outro e juntava os compadres, as comadres,
todos de cavalo. Hoje em dia ninguém conhece cavalhada, diz Dona Luiza.
Além
das diferenças de espaço, parece haver diferença de função, pois, na
cidade, no Largo Bom Jesus, nas festas de santo é exibição, noticia de
jornal, que faz parte da organização a cargo dos festeiros e no campo
faz parte de um ritual de divertimento, de integração dos vizinhos, da
família, amigos, compadres e comadres.
Quando voltava da cidade, subia a serra com o filho nas costas pela trilha do Rodeio e depois a trilha do Lambari.
Trabalhou
com o marido na roça, praticando uma agricultura familiar, criando
animais, plantando, ressaltando diversas vezes a dureza da vida, mas em
seguida afirmando serem tempos bons. Possuíam algo fundamental: a terra e
uma identidade secular com o bairro traduzido nas crenças e folguedos. A
serra, o sertão, era o local do trabalho, da moradia, do dia a dia, da
diversão e a cidade a realização do trabalho com a venda dos produtos.
Até
recentemente a humanidade vivia um ritmo mais lento, hoje, vivemos um
mundo da rapidez, onde os valores do mercado vão dominando todas as
etapas da vida, do dia a dia e deixam de lado a humanidade social.
Chaplin dizia no discurso final de o Grande Ditador
em 1940:”Nós desenvolvemos a velocidade mas nos fechamos em nós mesmos.
As máquinas que nos trouxeram abundancia nos deixaram desamparados,
nossa inteligencia duros e impiedosos. Nós pensamos demais e sentimos
muito pouco. Mais do que máquinas nós precisamos de humanidade”
Lembrando a caminhada com os filhos diz, em tom de censura e graça: agora só de carro tá aqui já tá lá e convida a neta para subir a serra a pé.
As
cavalhadas
campos onde eram realizadas cavalhadas em Cesar de Souza
As
cavalhadas foram introduzidas no Brasil pelos portugueses ainda no
período colonial e representavam a luta entre mouros e cristãos na
península ibérica.
A
representação dramática era iniciada com um torneio que reunia uma
dezena ou mais de cavaleiros, divididos em dois grupos: cristãos e
mouros, representados pelas cores azul e vermelho.
Os grupos
faziam evoluções mostrando a destreza em comandar os animais. As
cores e aparatos da cavalhada foram confirmadas pelo senhor Luis de
Santa Isabel.
Depois
destes torneios pode ser seguido o “jogo de argolinhas”
onde os cavaleiros mostram habilidades tirando um anel ou argola
suspensos por um fio.
O
jogo de argolinhas pode ocorrer de maneira independente do torneio
entre cristãos e mouros. Dona Luiza confirmou esta ultima
modalidade.
Para saber mais
ANDRADE, Mario. Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, a pedido do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema
Os filmes de Mario de Andrade feitos pelo
Departamento de Cultura do Município de Sao Paulo podem ser assistidos
no Centro Cultural São Paulo
CANTARINO, Carolina. Ações oficiais precisam ter continuidade. Cienc. Cult., São Paulo, v. 58, n. 2, June 2006
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re)produção do Espaço Urbano.SP:Edusp, 1994
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