divino, capela santa cruz do bairrinho (Etzel, 1978) |
Quando
andamos pelos caminhos do sertão em qualquer direção, seja para o lado
da serra do Itapety ou para a serra do Mar, encontramos muitas capelas
centenárias espalhadas pelo caminho, algumas com dimensões maiores para
agrupar razoável número de pessoas, outras menores, só para orações,
diversas santas cruzes e ainda capelas abertas para a estrada. Também
encontramos construções recentes, onde, em muitos sítios ou “chácaras de
fim de semana” o dono mandou construir um oratório ou capela.
região de atuação de JBC no Alto tiete. |
A
devoção acompanhou a colonização e a expansão humana pelo território e
até hoje, qualquer que seja a denominação religiosa, está lá junto aos
homens, a casa de Deus.
A
presença da religião era tão marcante e intensa que em 1821-1822 chama a
atenção como a legislação jurídico-político, no aspecto de auferir
legitimidade e seriedade ao ato eleitoral, valia-se de ações
simbólico-religiosas através de missas, missas cantadas e te-déuns em ação de graças antes e após os atos eleitorais. Dizia a legislação da época:“Chegada
a hora da reunião... se dirigirão com o presidente a Igreja Matriz e
nela celebrara o Pároco a Missa solene do Espírito Santo, e fará um
discurso análogo as circunstâncias.”
Acabada
a missa todos voltavam de onde tinham saído e iniciavam a junta
eleitoral. Terminados os trabalhos a junta eleitoral se dissolvia e “Os
cidadãos que formaram a Junta levando o Eleitor ou Eleitores entre o
presidente, Escrutinadores e Secretario, se dirigirão a Igreja Matriz,
onde se cantará um Te-Deum solene.”
Muitas
capelas serviram de núcleos de povoamento e se transformaram em
freguesias, vilas e cidades, exibindo os paramentos e acessórios
necessários ao culto religioso, outras mais simples e distantes, em
povoações menores, serviram para reunir as pessoas do bairro e eram
decoradas com o trabalho de santeiros, entalhadores de altar e pintores,
que até o final do século XIX transitavam por nossa região.
Os
santeiros para fazer as imagens de culto doméstico utilizavam como
matéria prima a madeira ou principalmente o barro e essas imagens,
típicas do século XIX e de nossa região, ficaram conhecidas como
paulistinha e povoaram as casas de caboclos e as capelinhas.
Essas
imagens, tidas hoje como de grande valor artístico, tinham com centro
irradiador a cidade de Santa Isabel onde morava o santeiro Dito Pituba.
Além desta cidade e de Arujá, cidade do santeiro Dito Luzia, o
pesquisador Eduardo Etzel reuniu na região, no início dos anos 70,
imagens paulistinhas em Sabaúna, Taiaçupeba e Salesópolis.
Os
locais de culto coletivo como igrejas e capelas, também recebiam o
trabalho de artesãos, que se dedicavam ao entalhe de altares e a pintura
decorativa.
É
neste imaginário de final do século XIX, ainda durante a escravidão,
que a 2 de fevereiro de 1877, em Paraibuna, nasce José Benedito da Cruz,
conforme consta no assentamento de batismo: “Aos
vinte e sete de fevereiro de mil oitocentos e setenta e sete batisei e
pus os santos óleos a José, de vinte dias, filho de Benedicto Antonio de
Souza e de Maria Francisca”. Seus pais, egressos da Bahia, alcançaram o Vale do Paraíba acompanhando o crescimento da lavoura cafeeira nesta região.
José Benedito da Cruz, caboclo de olhos verdes, “pardão, cor de cuia”, foi um homem simples, católico e religioso, membro da Ordem Terceira do Carmo em Mogi das Cruzes, conforme depoimento de seu filho Ciro Esperidião, recolhido por Etzel em 1977.
mapa 1915, estrada do salto até Sabaúna |
Passou
sua infância em São Luiz do Paraitinga e aos vinte anos, casa-se em
Mogi das Cruzes com Thereza Maria de Jesus, moradora de Biritiba Mirim.
(dos dez filhos do casal, apenas quatro chegaram à idade adulta).
Durante um bom tempo, residiu numa pequena chácara, situada no Alto do
Ipiranga, a qual vendeu para adquirir um sítio no bairro do Salto, na
Serra do Itapeti, entre Sabaúna e Guararema, onde passou os últimos dez
anos de sua vida.Trabalhou em Sabaúna para onde a estrada do Salto
levava diretamente.
Faleceu em 14 de janeiro de 1934, aos cinquenta e seis anos. O atestado de óbito aponta como causa da morte: “alienação mental e caquexia”.
Os
apelidos de José Benedicto da Cruz dão um ideia de suas atividades. Era
conhecido como Zé Pedreiro, Zé Pintor, Zé Santeiro e Zé Correia.
Autodidata, dotado de uma sensibilidade fora do comum, seu ofício “aprendeu de ideia, com o sentido dele mesmo”. Rosa, sua filha, lembra-se de certa vez o pai ter afirmado ser : “capaz de fazer qualquer coisa, e que se quisesse fazia um terno e virava alfaiate”.
pinturas de JBC, capela do Bairrinho (Etzel,1978) |
Este
foi José Benedicto da Cruz, diarista, criador e recriador de igrejas e
pinturas, capaz de realizar uma releitura única das obras clássicas
(como as pinturas do espanhol Murillo) e ambientá-las no meio rural e
caboclo do sertão do Alto Tietê e do Vale do Paraíba. “... teve
a coragem de pintar os anjos de Murillo à sua própria feição,
fazendo-os como pediam sua capacidade e intuição. Espelha-se então como
um delicioso primitivo que retratou nos anjos a infância pobre e
brutalizada que o rodeava na vida simples de sua própria vizinhança.”
mapa da estrada Itapeti do Salto-Capela do Sino |
Hoje,
seguindo pela estrada Mogi Guararema antes do início da descida da
serra de Sabaúna, encontramos uma capelinha ao lado esquerdo, onde
começa a estrada Itapeti do Salto.
foto atual, capela do sino, estrada itapeti do salto |
Caminhando por ela, localizamos,
ainda resistindo ao tempo, numa pequena capela, o trabalho do final da
vida de JBC: uma pintura do Santo Sudário, pintado sobre tábuas, que na
reforma da capela da Santa Cruz do Sino, foi colocada no alpendre, já
tendo sofrido repintura. Seguindo pelo mesmo caminho, pouco mais à
frente, já no território de Guararema, encontramos a Capela da Santa
Cruz do Bairrinho (aqui vista nas fotos de Etzel de
1978 e as cores vivas de JBC).Atualmente a Capela da Santa
Cruz do Bairrinho conserva somente pinturas decorativas nas paredes laterais, sem referência as pinturas originais de JBC.
Nosso
personagem, apesar das pesquisas de Etzel, continua quase anônimo e
além de fazer pinturas e ser santeiro, foi “divineiro”, ou seja, fazia
delicados Divinos de barro ou madeira, assim como João Caetano,
divineiro de Biritiba Ussu, que depois de um derrame, morreu na Santa
Casa pobre e anônimo.
Fontes:
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978. p. 16-30 (passim).
Para saber mais
Oratórios: constituem pequenas capelas domésticas para se acomodar as imagens de devoção.JBC fazia e decorava oratórios.
Paulistinhas: imagens de santo, geralmente feitas de barro queimado e confeccionadas principalmente no século XIX.
Retábulos: constituem
painéis sacros, entalhados em madeira, que se posicionam acima ou
atrás do altar principal. JBC foi o responsável pela confecção de
retábulos e provavelmente, dos altares das Igrejas do Barroso, Biritiba
Mirim, Quatinga Velha (hoje um patrimônio cultural desaparecido) e São
Sebastião.
Te Déuns: Cântico católico em ação de graças iniciado pela expressão "Te Deum laudamus" (Senhor nós te louvamos).
Publicações
ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São Paulo, apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos/EDUSP, 1971.
______. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978.
______. Divino, simbolismo no folclore e na arte popular. São Paulo: Kosmos, 1995.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário