igreja do bairro de Santa Catarina |
Depois
de mais ou menos 280 quilômetros de andanças em algumas estradas de
asfalto e muitas de terra, ouvindo pessoas e fotografando as obras de
José Benedicto da Cruz, voltamos onde ele fez suas primeiras obras
sacras, na Matriz de São Benedito em Biritiba Mirim e a igreja do bairro
de Santa Catarina, na mesma cidade, distante cinco quilômetros do
centro.
Saindo
de Mogi, pode-se seguir direto por asfalto para Biritiba Mirim ou então
até o distrito César de Souza e pela estrada do Rio Acima chegar ao
bairro de Santa Catarina, onde um bar construído em 1918 divide o espaço
com a Igreja e mais duas ou três casas.
Segundo
Eduardo Etzel, foi em Biritiba Mirim e no bairro de Santa Catarina, que
JBC começou a desenvolver toda sua genialidade através de suas pinturas
sacras.
Para Etzel era incompreensível existir uma construção do tamanho da igreja de Santa Catarina, no que ele chamava de construção “desproporcionada para o deserto onde se situa”,
no entanto, a região estava perto da área do terceiro distrito do
Núcleo Colonial de Sabaúna, portanto, além dos moradores já fixados e
dispersos em sítios naquela região, agregava-se outros vindos
recentemente para ocupar as terras coloniais de Sabaúna, que em
1905-1910, ano das pinturas sacras de JBC em Biritiba e Santa Catarina,
vivia seu florescimento como núcleo agrícola.
interior da igreja de Santa Catarina-Biritiba Mirim |
A
igreja de Santa Catarina impressiona pelas dimensões, com coro da nave,
capela mor, sacristia e compartimentos laterais, no entanto, é
semelhante a outras em ambiente rural, onde tinha a função de atração e
socialização dos membros do bairro que viviam a certa distância do
templo, o que explica suas dimensões e seu quase isolamento no dia a
dia, interrompido por festas e missas (um antigo morador afirmou que nos
anos 50 – 60 as festas eram semanais).
Das
igrejas visitadas e documentadas por Etzel, Santa Catarina é a que
contava com uma pequena descrição, somente da pintura do forro azul da
igreja, decorado por nuvens brancas que circundam a imagem da santa.
Podemos arriscar dizer que os dois altares laterais e o altar mor também
foram feitos por JBC, pois, são semelhantes às construções dos altares
laterais de Quatinga (igreja hoje inexistente) e da antiga igreja de
Biritiba Mirim, atribuidos a JBC. Os elementos decorativos que compõem o
altar como as colunas, a parte superior destas, o frontão (com o
coração no centro) e o acabamento superior em formato triangular em tudo
são semelhantes aos retábulos laterais de outras igrejas e o rendilhado
do altar mor, assim como outros atributos, também se assemelham a
outros trabalhos de JBC.
Podemos
afirmar, que das dez igrejas e capelas construídas ou adornadas por
JBC, apenas a de São Sebastião ainda resiste, mantendo a configuração
original do artista, pois um antigo zelador da igreja de Santa Catarina
descascou o reboco decorado original da parede, para realizar nova
pintura.
A
pintura que vemos hoje decorando o interior da igreja, foi feita por
Dimas Pintor, morador de Biritiba Mirim, desde 1968, e tendo cursado
Artes Plásticas, conhecia o trabalho de JBC e possuia fotos antigas do
interior da igreja, podendo assim basear-se para construir moldes
semelhantes a pintura original e proceder a decoração, inclusive a
marmorização da parte baixa das paredes. Segundo sua informação, a
intervenção se resumiu à nave principal da igreja, sendo a pintura do
forro e demais ambientes mantidas.
Saindo
da igreja de Santa Catarina rumo a Matriz de Biritiba Mirim, distante
cinco quilômetros, encontramos pouco da obra de JBC. A matriz de São
Benedito, originalmente pintada por JBC entre 1905 e 1910, passou por
sucessivas perdas: "Por
ocasião de uma reforma com ampliação da igreja a capela mor foi
incorporada à antiga nave e acrescentou-se uma nova capela mor. Neste
transcurso perdeu-se a pintura de São Benedito, que caracterizava a
igreja... No forro da nave permanece intocado o grande painel ... da
Imaculada". É esta recriação da obra do pintor espanhol Murillo
(1617-1682) realizada por JBC, a que mais chama atenção do crítico
Etzel, pois é ali que o artista caboclo mostra toda a sua "audácia e
capacidade artística ... a coragem de pintar os anjos de Murillo à sua
própria feição, fazendo-os como pediam sua capacidade e intuição..." (Etzel, 1978).
Em
reforma bem mais recente, a Igreja passou por nova ampliação e todo o
forro com as pinturas de JBC foi removido e substituído por um "moderno"
forro metálico de gosto duvidoso. O painel com a complexa pintura da
Imaculada foi incorporado junto a capela lateral direita. Quando
visitamos a matriz, era ali que se reunia um pequeno número de mulheres
em longa oração, sob o olhar da Imaculada.
altar mor, Igreja de Santa Catarina |
Tradição, memória e cidadania
Em 1980, o tema da música “Tradição”, inquietava seu autor (André Barbosa, mais conhecido como o B. Anderson de Tell me once again) que se perguntava:
Alguém diz onde se esconde / A memória nacional
Contam que está morrendo / Outros que nunca existiu
Falam que foi pro estrangeiro / D'onde nunca mais saiu
Oh! Seu moço me responda / Não estaria ai no Rio?
Ou quem sabe desgostosa / Foi pra Portugal de navio
A
modernidade não é incompatível com a tradição, antes, a preservação do
trabalho humano, do saber e do saber fazer é preservação da memória e
uma questão de cidadania.
restauro das igrejas do Carmo, Mogi das Cruzes |
Para
o historiador José Murilo de Carvalho, o termo cidadania pode ser
compreendido racionalmente pelas lutas, conquistas e derrotas do cidadão
brasileiro ao longo da história nacional e envolve ação e o alcance de
tal definição pode ser aplicado ao patrimônio histórico de Mogi quando
do tombamento das Igrejas do Carmo, onde uma “batalha” se deu na cidade
entre aqueles que queriam a preservação das igrejas e aqueles que
queriam sua demolição, que foi noticiado assim pela revista Ato em 1982:”Foi
uma verdadeira batalha. De um lado os frades carmelitas que queriam
demolir as centenarias igrejas das ordens 1º e 3º, do Carmo; de outro, o
inconformismo do professor de História Horacio da Silveira apoiado por
um grupo de mogianos...”, entre esses, Delfino José de Camargo que visitava as obras constantemente durante a década que demorou o restauro.
O
Boletim do SPHAN de 1980 relatava que em 1967, em Mogi das Cruzes, Frei
Hilarião Remmerswall, procurador da Província Carmelitana de Santo
Elias, enviou um abaixo assinado com 6.184 assinaturas requerendo ao
SPHAN, o cancelamento do ato de tombamento das Igrejas do Carmo, pois
pretendia derrubar a antiga igreja e construir outra, “mais moderna” e
ampla para atender ao aumento da população. Felizmente parte da
população encaminhou outra lista, esta sim, favorável ao tombamento e
restauro do prédio, que permaneceu em obras de recuperação por mais de
dez anos.
A carta denúncia do arquiteto Lúcio Costa ilustra o clima de disputa vivido pela população no final dos 60:
carta de Lúcio Costa |
"É
incrível que, numa cidade civilizada e florescente como Mogi das
Cruzes, se pretenda demolir dois monumentos de tamanho valor e
significação. Como pode alguém - e foram milhares os que
inadvertidamente pleitearam a pena de morte para as duas pobres igrejas
inermes - como pode alguém admitir, em sã consciência, que talhas e
pinturas arquitetônicamente integradas sejam destruídas (ou
pretensamente removidas) e a cidade se veja assim, motu próprio,
empobrecida com a perda dessas insubstituíveis testemunhas da sua origem
e tradição, a pretexto da necessidade de dispor de maior espaço para
abrigar fiéis (ou infiéis?).”
Já a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, não teve a mesma sorte...
O
patrimônio em perigo insiste em lembrar, como é o caso da arte de JBC,
que intervenções neste patrimônio devem ser sempre comedidas e geradas
através de atitudes preservacionistas e éticas, como demonstra a ação de Dorival
Cerimoniário, ''zelador'' da igreja de São Sebastião, um quase menino,
que com seus 16 anos, tem mais consciência de cidadania que muito
adulto.
Lembrando
que, ao fazermos parte de uma sociedade que passa por constantes
mudanças e transições, a preservação da memória é item básico. Se
pretendemos alcalçar a tão propalada Sociedade do Conhecimento, temos a
obrigação cidadã de democratizar o acesso à informação e compartilhar o
conhecimento produzido.
forro da igreja de Santa Catarina, Biritiba Mirim |
detalhe altar mor da igreja de Santa Catarina |
Para saber mais
CARVALHO, Jose Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 9-10.
O ESTADO de São Paulo, reportagem 21/06/1977, p.22 – 14/06/1977, p.14
REVISTA Eletrônica do IPHAN, http://portal.iphan.gov.br Boletim do SPHAN nº 07 MÊS JUL./AGO. ANO 1980
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978.