Nos
rastros do lixo: a cidade de Mogi das Cruzes e os restos
Em nosso
dia a dia as pessoas estão acostumadas de tal maneira com o ato de
descartar, que não se dão conta de produzir enorme quantidade de
restos, desde embalagens plásticas e plásticos de toda natureza,
papel, metais, vidros e até mesmo alimentos. O modo de produzir as
coisas gera cada vez mais desejos por coisas novas e por sua vez mais
restos são produzidos e descartados. Somando-se a isto temos os
despejos da construção civil, dejetos industriais e hospitalares
que necessitam um lugar apropriado para ser armazenado.
O destino
final dos restos é o grande problema que atinge a todos, mas por
outro lado, tornou-se também algo extremamente rentável, de grande
interesse para empresas empenhadas na construção de um destino
final, seja um aterro sanitário ou usina para processamento. Deste
modo, ao que chamamos por lixo, transforma-se em alvo de disputas –
por vezes violentas - para apropriação daquilo que ninguém quer.
Entender
o caminho trilhado pelo lixo, desde o século XIX como problema
urbano e de saúde pública, até a sua transformação em questão
ambiental e mercadoria hoje em dia, indica a possibilidade de traçar
uma história do lixo, tema não menos importante para a história.
O lixo
da cidade nas posturas municipais do século XIX
Postura Municipal |
Pensando
numa história do lixo, as posturas municipais são documentos
importantes para conhecermos, em meados do século XIX, a existência
de normas relativas à presença das “imundícies” ou lixo dentro
da cidade. Em Mogi das Cruzes a postura municipal de 1856
explicitamente tratava do lixo em seu art. 1º na seção de higiene
pública: “Os proprietários residentes nesta cidade serão
obrigados a conservar suas casas limpas e arejadas e suas frentes
varridas até o meio da rua duas vezes por semana, e o lixo será
amontoado na rua e daí será lançado fora da povoação a custa da
Câmara...”.
A
preocupação com a coleta vinha acompanhada de medidas que buscavam
sanear e ordenar a cidade em função de epidemias como a varíola,
atingindo os espaços públicos, onde era proibido a criação de
animais nas ruas e os espaços privados, como quintais e casas, que
deveriam ser fiscalizados quanto as mesmas criações de animais,
como expresso na postura de 1856: “Dentro desta cidade só em
quintais muito espaçosos será permitido a criação de porcos
soltos ou em chiqueiro com a maior limpeza possível, esta concessão
será suspensa desde o momento em que se verifique a existência de
epidemia reinante em algum ponto desta província.”. Estes artigos
eram acompanhados de penalidades ao infrator, que podiam variar de
multa até dias de prisão. Tratava-se portanto, de vigiar e punir,
como relata a historiadora Rosana Miziara, “a necessidade de
limpeza das ruas apoiava-se mais em valores morais e intenções
punitivas do que em um ideário sanitário. Quem realizava esse
trabalho de recolhimento das sujeiras eram os considerados excluídos
da sociedade: negros e mulatas forras.”
Mas o que
exatamente era lixo e onde era depositado? As mesmas posturas
municipais lançam pistas, ao indicar que a varrição na frente das
casas era composta de ciscos e excremento de animais e nas ruas,
beco, praças, proibido jogar entulhos como vidros, ferro, ossos ou
algo mais que pudessem ferir os passantes.
Os
animais mortos deveriam ser enterrados a certa distancia do núcleo
urbano e de nenhuma maneira lançados em riachos, as “águas
estagnadas e lixos” eram preocupação constante, tanto as águas
paradas da rua como córregos e riachos de servidão pública, que
deveriam ser cuidados e desimpedidos pelos proprietários dos
terrenos por onde passassem. Já a carne vinda do matadouro para os
açougues deveria ser transportada “coberta com panos limpos”.
Código Sanitario |
No fim do
século XIX em 1894 o Código Sanitário do Estado de São Paulo era
promulgado tendo em seu conteúdo 520 artigos, sendo, portanto mais
específico que as Posturas Municipais na normatização da vida e no
afastamento do indesejado, como os cemitérios, matadouros e dejetos,
como mostram os seguintes artigos relativos ao lixo: art.22 “o lixo
e a lama recolhidos nas ruas e praças deverão ser transportados em
carroças fechadas de tipos os mais aperfeiçoados, e depositados em
ponto afastado dos centros populosos e ali incinerados.” Art.23
“todos os resíduos deverão indistintamente passar pelo
incinerador”.
O
século XX: a caminho do negocio e lucratividade do lixo
Nas
décadas iniciais do século XX, queimar o lixo era a solução
encontrada, mas com o crescimento das cidades e principalmente com
uma maior quantidade de coisas fabricadas e oferecidas para o consumo
diário da população, a quantidade de resíduos sólidos passou a
ser um problema que cada vez mais exigia uma solução técnica.
Na
Europa, uma das técnicas estudada era a degradação biológica de
matéria orgânica, fenômeno que ocorreu sempre na natureza. Foi a
observação deste processo natural de decomposição da matéria
orgânica que levou o homem a tentar reproduzi-lo visando o
melhoramento de solos pobres ou intensamente utilizados, através de
uma técnica denominada compostagem.
Nos anos
20 e 30, varias experiências em larga escala são realizadas com
estudos em laboratório utilizando na compostagem, resíduos vegetais
e estrume de estábulos, resultando estes esforços num conjunto
diversificado de patentes a partir dos 1920.
Destes
processos os mais importantes são os seguintes: O processo Becari
(1922), patenteado na Itália; O sistema Itano (1928) que consiste
num processo mecânico; O sistema Bordas (1931) que consiste num
melhoramento do processo Becari e cuja principal diferença está na
realização da fermentação; O sistema Dano (1933), desenvolvido na
Dinamarca, inicialmente como um processo destinado a preparar os
resíduos sólidos urbanos para a compostagem através de processos
tradicionais e o método Earp-Thomas (1933).
É
justamente o sistema Dano, que por preparar resíduos sólidos,
mostrava um grande potencial para tratar o lixo urbano e desta
maneira chamava a atenção de cidades, como Mogi das Cruzes, que
tinham no lixo um problema urbano, dentre outros.
1957:Mogi
e a usina dinamarquesa
O ano de
1957 terminava e havia o testemunho que um disco voador tinha pousado
em Mogi lá pelo lado das 3 cruzes (atual Jardim Camila), mas, a
cidade enfrentava outros problemas bem mais terrenos e concretos.
O jornal
o “Diário de Mogi” noticiava os problemas da cidade neste ano de
1957 que findava: o trânsito, acentuando “um clima de desordem e
confusão”; a falta de arborização na cidade, cobrando “o
incremento do plantio de árvores” e o lixo com uma “limpeza
pública deficiente... lixo acumulado”.
Diário de Mogi 1957 |
Se a
coleta dos restos era deficiente, uma solução era apresentada na
destinação final do lixo, ou seja, uma usina que utilizava o
sistema dinamarquês Dano na produção de composto orgânico.
Tratado
como prioritário na questão do lixo, a usina e seu maquinário era
descrito juntamente com o método. A transformação do lixo em adubo
seguia três etapas: primeiro um eletro-imã cuidava de separar
metais, latas, etc. caindo a seguir o lixo numa correia
transportadora para levar ao silo de fermentação. Neste silo de
fermentação, seguia por 3 a 5 dias numa temperatura de 60º graus,
que acreditava-se ser suficiente para eliminar os germes e terminando
o processo, o material grosseiro como pedras, vidro, porcelana,
metais não ferrosos, era separado em peneiras vibratórias.
O
objetivo final com a utilização do processo Dano era produzir
adubo, o que numa cidade agrícola como Mogi era o grande atrativo,
sendo que, o engenheiro responsável destacava a ausência de cheiro
na usina e no material final que pasteurizado, permitia sua
utilização sem o perigo de contágio com doenças infecciosas.
A usina
não chegou a Mogi, no entanto, o sistema Dano de compostagem, entre
outros, foi largamente utilizado no Brasil, com instalações em
grandes cidades, gerando procura pelo composto por parte de
agricultores de grandes cultivos como as fazendas de café do Paraná
e Minas Gerais.
De 1957 até hoje, a solução
adotada continuou sendo afastar o lixo do olhar e consumir sem culpa
ou como diz o antropólogo Everardo Rocha, “fazendo do consumo um
projeto de vida” numa sociedade que julga cidadão aquele que
consome, aquele que tem e possui coisas, que descartadas viram lixo.
Fontes:
Arquivo
“O Diário de Mogi”:dezembro de 1957, várias edições
ALESP:
Posturas Municipais da cidade de Mogi das Cruzes 1856, 1857
APESP:
Código sanitário do Estado de São Paulo, 1894
Para
saber mais:
POSTURAS
MUNICIPAIS: compreende uma série de artigos e normas que regulavam
o comportamento dos munícipes, desde suas relações de vizinhança,
coerção de escravos, impostos municipais, punições por multa e/ou
prisão. Se constitui em importante fonte historiográfica para
compreensão da cidade.
MIZIARA,
Rosana. Nos rastros dos restos:
as trajetórias do lixo na cidade de São Paulo. São Paulo: Educ,
2001.
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