quinta-feira, 17 de março de 2011

Cotidiano, terra e índios

No processo de produção da vida através da atividade prática, na existência cotidiana, no processo real de vida dos homens, vivemos imbricados em relações que são historicamente determinadas a partir de certo estágio de desenvolvimento da sociedade. Junto à produção material há também a produção de idéias jurídicas, religiosas, representações, arte, ciência, etc., em suma, uma totalidade que se influencia mutuamente em relações de alteridade.
Ao historicizar o cotidiano e enfocá-lo como uma temporalidade composta de uma sucessão de presentes, temos uma relação dialética entre o acontecimento, a conjuntura e a estrutura, entre permanências e rupturas.
“Na origem latina, quot dies é, ao mesmo tempo, um dia e todos os dias. Engloba, assim, tanto o instantâneo como o duradouro, o incisivo e transformador e o repetitivo. Cotidiano tem, portanto dois sentidos temporais complementares. É o que acontece em um dado dia, num tempo brevíssimo, uma efeméride, e o que acontece todos os dias, portanto num tempo potencialmente longo.”[1]
Aplicando esta breve definição à Freguesia da Escada, outrora terra de índios, temos a seguinte situação ao analisar documentos de ordem jurídica que nos mostra o cotidiano dos moradores do lugar.
No governo de Morgado de Mateus no ano de 1765 discutiu-se a idéia de transformar os aldeamentos em freguesias e este projeto caminhou para tornar-se realidade em 1803 com o
“Plano em que se propõem o melhoramento da sorte dos índios, reduzindo-se a Freguesias as suas Aldeas e extinguindo-se este nome e esta separação em que tem vivido a mais de dois séculos.”[2]
Neste plano, a aldeia da Escada que ficava junto à estrada Geral, ligando S.P. ao R.J., era colocada como uma potencial povoação importante, pois contava com 212 habitantes índios, tendo muitos moradores nos seus arredores e se tornava própria para transformação em freguesia. A partir daí, sem a atuação e ação dos padres que proibiam a entrada de colonos no aldeamento e para as terras próximas às dos índios, a população da freguesia cresceria sem nenhuma restrição.
Mas, ao contrario do pretendido no plano referido, a transformação para freguesias resultou inicialmente em disputas por terra e dispersão dos habitantes originais, sendo contraditório a partir do próprio título do plano de 1803 que pretendia melhorar a “sorte” dos índios.
Ao tentar resolver um problema causado pela própria administração portuguesa, quando fundou os aldeamentos e impôs um complexo cultural originariamente europeu, aplicado em possessões portuguesas, com o avanço da colonização e crescimento da colônia se reduzia os índios a meras peças de trabalho, retirando e desorganizando o sentido coletivo do trabalho em sociedades cujo conceito trabalho estava envolto por categorias morais, sociais, rituais, e não físicas e econômicas como na Europa mercantilista.
A transformação em freguesia gerou a situação que produziu o documento citado abaixo, ou seja, uma disputa colono x índios pelo lugar denominado barreiro, onde o trabalho tinha características coletivas para os indígenas e conseqüentemente a fonte de matéria-prima era de uso comum, diferente da forma utilizada pelo colono que se caracterizou por tornar a terra de uso individual - utilitário para uso mercantil.
Os moradores da Escada se referiam no início do século XIX a um lugar chamado “barreiro” utilizado de forma comunitária por várias famílias para produzir “loiças.[3] :
“São o pobres Indígenas moradores junto a esta Cap.1a de N. S. da Escada (seguem quatorze nomes e famílias), assim todos Moradores de dentro do pateo como de longe, q. desde sua criação, forão Srs, de hum lugar chamado Barreiro, onde todo porocurão o Barro p.a as facturas de loiça pa serventia de suas casas como donde tirão algum vintem p.a os mais socorros, assim todos moradores de mao comum se servem dos d.os Barreiros:ex q. de repente o Espírito de ambição não dando lugar ao murador mais perto Manoel Joaq.m de Araújo, se faz S.r do d.o lugar sercando com caraguatás, afim de ficarem privados desta tão antiga posse, m.mo q. o d.o tivesse em seos títulos já se devia amordar aesta utilidade publica portanto  [...]".
Este documento também revela o traçado de um aldeamento com a referência a “moradores de dentro do pateo como de longe”, isto é, a Igreja e o terreno retangular em frente com habitações laterais (pateo) e possivelmente desde a criação do aldeamento os índios utilizavam a argila para manufaturas.
Nos anos que se seguiram, os conflitos envolvendo demarcação de terras e criações de animais continuaram a existir como mostra outro documento de 1834, mas, não envolvia mais os habitantes do ex-aldeamento.
Hoje, praticamente é o mesmo espaço de outrora que encontramos na Freguesia da Escada, quase duzentos anos depois, com outra destinação e sem os habitantes originais ou seus descendentes.
A grafia em itálico respeita o documento

[1] GUARINELLO,Norberto Luiz, História científica, história contemporânea e história cotidiana. S.P., Rev. Bras. De História, v. 24, n° 48, 2004 p.19
[2] - Documentos interessantes para história e costumes de São Paulo, volume 95, ed. Unesp, ( 1990) p.105
[3] - Acervo do Fórum, termos de conciliação,Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes

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