quinta-feira, 31 de março de 2011

Sons da cidade: o amolador de facas e o homem do biju

Agora temos amolador de faca elétrico. Produto importado, anunciado na televisão.
Nem sempre foi assim, pois havia aquele senhor que percorria as ruas da cidade, empurrando um carrinho ou pedalando uma bicicleta adaptada, soprando uma gaita com quatro ou cinco notas agudas, gritando “olha o amolador”.
O som avisava, era o amolador de facas, alicate de unha, tesouras, tesouras de cortar grama e tudo o que tivesse lâmina e pudesse ser afiado.
Amolar uma lâmina requeria a ciência de saber o ângulo em que a lâmina deveria ser posicionada quando em contato com a pedra de amolar, que acionada por pedal e correia, girava em velocidade soltando faíscas em contato com o aço ou ferro da peça que estava sendo afiada.
Hoje esta profissão, essencialmente do meio urbano, quase está extinta.
O amolador que trabalha nos bairros da zona leste de São Paulo, se desloca pelas cidades do Alto Tiete a procura de fios de navalha e serviço.
O vendedor de biju é outra profissão que não se vê e não se ouve.
A massa de biscoito fino em formato de canudo quase desapareceu dos centros urbanos e junto com ela, o vendedor.
Lá vinha o homem com uma matraca na mão, um pedaço de madeira retangular com uma abertura onde se colocavam os dedos, uma argola de ferro que batia nos dois lados da madeira, ao realizar um movimento de vai e vem com as mãos e lá vinha o som, tec, tec, tec, “olha o biju”.
Não só os prédios, as coisas materiais, deveriam ser tombados, mas também, o trabalho e o trabalhador, enquanto patrimônio humano.

 Antigo amolador de facas por Genevieve Naylor. Em BOEMIA E NOSTALGIA. Cotidiano Brasileiro, 1940-1943. Disponível em http://boemiaenostalgia.blogspot.com/2008/07/cotidiano-brasileiro-1940-1943.html. Acesso Março, 2011.

domingo, 27 de março de 2011

Mogy das Cruzes, Domingo, 27 de março de 1881

Há exatos 130 anos, circulava a edição numero cinco da “Gazeta de Mogy das Cruzes: periódico litterário, noticioso e commercial”.
Primeiro jornal da cidade, fundado em fevereiro do mesmo ano, em suas quatro páginas iniciava com um artigo a respeito de núcleos agrícolas, expondo as vantagens que o governo da província poderia vir a ter caso adquirisse as terras da “campina do Santo Ângelo que temos na proximidade d’esta cidade”. (atual Jundiapeba e Santo Ângelo).
 O artigo do jornal se referia à criação de núcleos agrícolas com base em uma lei provincial, de 1880, que admitia a formação de núcleos com menores de 12 anos para o cultivo de gêneros agrícolas, abastecimento de núcleos urbanos e assim finalizava o texto do periódico: “Estando estes lindos terrenos tanto nas proximidades da capital como de Mogy das Cruzes, com as linhas férreas -- ingleza e do norte-- que lhes ficam a dois passos, o que resta pois para que tanto terreno perdido seja utilisado?”(anos depois o núcleo veio a ser em Sabaúna, composto por imigrantes).
O jornal ainda em sua primeira página possuía uma coluna de Variedades falando sobre “Os Filantes”. 
Na pagina dois e três as colunas “Notícias”, “ Avisos”e “Secção Livre” com acontecimentos da Europa, EUA, interior da província , da cidade e avisos sobre horário de trens para São Paulo, Rio de Janeiro e Cachoeira, cotação de gêneros agrícolas no mercado da cidade, em Santos, São Paulo e café no mercado do Rio de Janeiro.
Ainda nesta pagina três, a comunicação da contratação de um Pharmaceutico como médico da câmara “para tratar dos enfermos pobres do município, sendo necessária por parte d’esses apresentarem-lhe attestado de pobreza” e a notícia da morte, em São José dos Campos, de um escravo liberto, com 120 anos, achado na mata “n’esse estado de decomposição (...) sepultado no logar onde foi encontrado”. 
Escravos ou libertos com idade avançada constituíam uma exceção na sociedade escravocrata no Brasil do século XIX, principalmente nas regiões monocultoras do sudeste (Vale do Paraíba — café), como constatou o médico Manoel da Gama Lobo em trabalho pioneiro (1865) sobre a deficiência nutricional causada pelas degradantes condições de vida do escravo.
“O trabalho excessivo, a alimentação insuficiente, os castigos corporais em excesso transformam estes entes miseráveis em verdadeiras máquinas de fazer dinheiro; sem direito de casamento, sem laço algum de amizade que os ligue sobre a terra, eles perdem o ânimo, sendo vítimas de opilações, úlceras crônicas, caquexias e todas as moléstias que são ocasionadas por uma alimentação insuficiente.” (Gama Lobo, 1865a, p.432).
Finalizando o jornal, a seção “Annuncios”, com os anunciantes da cidade, São Paulo e Vale do Paraíba.Anúncios da “Casa Bancaria” de São Paulo, Funilaria, Pharmácia, Armarinhos, Sapataria, Typografia em Mogi das Cruzes e de São José dos Campos o famoso Licor de Japecanga Iodurado, que consistia numa erva em solução de iodeto e álcool, usado no tratamento de sífilis, gonorréia, corrimento vaginal, lepra, varíola, tumores variados, reumatismo, feridas, micoses, infecções na pele e ossos, gota, tuberculose, enfim “todas as moléstias que tem sua causa na impureza do sangue”.
As letras em itálico respeitam a grafia original do documento
 

















Fontes:
DAESP, colônias caixa 4
VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de; SANTOS, Leonor Maria Pacheco. Tributo a Manoel da Gama Lobo (1835-1883), pioneiro na epidemiologia da deficiência de vitamina A no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, Dec. 200Availablefrom. access on 26 Mar. 2011. doi: 10.1590/S0104-59702007000400013.

quarta-feira, 23 de março de 2011

A Santa Casa e a varíola em 1900

As Misericórdias foram instituições de assistência aos pobres, existente em Portugal desde o século XV e nas colônias portuguesas posteriormente.
A direção das instituições de Misericórdia cabia a membros de prestígio e posses em uma determinada sociedade, realçando a importância do cargo de provedor.
Em Mogi das Cruzes o “Asylo da Sociedade Mogyana de Beneficiência” começava a funcionar em 1873, tendo como 1º secretário, o futuro redator do primeiro jornal da cidade “A Gazeta de Mogy das Cruzes” e na sua direção, membros da Câmara Municipal e da Guarda Nacional.
A Câmara Municipal encaminhou para Assembléia Legislativa, no ano de 1900, dois pedidos de verbas, “concedidos em annos anteriores”para “o Hospital de Isolamento de variolosos d’esta cidade e a Santa Casa de Misericórdia, denominada Asylo da Sociedade Mogyana de Beneficiencia”.
Vinte e dois anos eram passados desde as primeiras experiências, em 1878, com o isolamento de doentes longe dos locais mais habitados, seguindo o modelo norte-americano e europeu no tratamento da varíola (assunto tratado em postagens anteriores como varíola e o Lazareto do Itapety), aliando o binômio pobreza-doença.
Segundo Giovana Mastromauro que estudou os hospitais de isolamento
As pessoas que estavam com suspeitas de doença,quando percebidas na rua pela polícia sanitária, eram recolhidas e imediatamente levadas ao Desinfetório Municipal. Uma vez constatada a doença eram levadas finalmente ao Hospital de Isolamento. O doente entregava suas vestes às enfermeiras, que as levavam para desinfetá-las. A partir desse momento, o enfermo se tornava praticamente num detento, e era considerado nocivo para a sociedade. (...) O regulamento para os hospitais de isolamento é explicitamente segregador”
A varíola seguia como realidade, a não aceitação da vacinação e do pus vacínico contribuía para dizimar vidas pelos anos 1880 – 1890, especialmente com a epidemia de 1892 em Mogi das Cruzes.
Em 1900 a vacina ainda era recusada, o isolamento era adotado.
Disponível em http://www.ceticismoaberto.com/ciencia/3437/a-histeria-da-vacina
















Os temores sobre vacinas eram compreensíveis quando elas eram algo novo, mas são as preocupações atuais fundamentadas?

Fontes: Arquivo da Assembléia Legislativa de São Paulo, caixa 213

Mastromauro G C. Urbanismo e salubridade na São Paulo Imperial: o Hospital de Isolamento e o Cemitério do Araçá. [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Católica de Campinas; 2008.

As letras em italico respeitam a grafia do documento

quinta-feira, 17 de março de 2011

Cotidiano, terra e índios

No processo de produção da vida através da atividade prática, na existência cotidiana, no processo real de vida dos homens, vivemos imbricados em relações que são historicamente determinadas a partir de certo estágio de desenvolvimento da sociedade. Junto à produção material há também a produção de idéias jurídicas, religiosas, representações, arte, ciência, etc., em suma, uma totalidade que se influencia mutuamente em relações de alteridade.
Ao historicizar o cotidiano e enfocá-lo como uma temporalidade composta de uma sucessão de presentes, temos uma relação dialética entre o acontecimento, a conjuntura e a estrutura, entre permanências e rupturas.
“Na origem latina, quot dies é, ao mesmo tempo, um dia e todos os dias. Engloba, assim, tanto o instantâneo como o duradouro, o incisivo e transformador e o repetitivo. Cotidiano tem, portanto dois sentidos temporais complementares. É o que acontece em um dado dia, num tempo brevíssimo, uma efeméride, e o que acontece todos os dias, portanto num tempo potencialmente longo.”[1]
Aplicando esta breve definição à Freguesia da Escada, outrora terra de índios, temos a seguinte situação ao analisar documentos de ordem jurídica que nos mostra o cotidiano dos moradores do lugar.
No governo de Morgado de Mateus no ano de 1765 discutiu-se a idéia de transformar os aldeamentos em freguesias e este projeto caminhou para tornar-se realidade em 1803 com o
“Plano em que se propõem o melhoramento da sorte dos índios, reduzindo-se a Freguesias as suas Aldeas e extinguindo-se este nome e esta separação em que tem vivido a mais de dois séculos.”[2]
Neste plano, a aldeia da Escada que ficava junto à estrada Geral, ligando S.P. ao R.J., era colocada como uma potencial povoação importante, pois contava com 212 habitantes índios, tendo muitos moradores nos seus arredores e se tornava própria para transformação em freguesia. A partir daí, sem a atuação e ação dos padres que proibiam a entrada de colonos no aldeamento e para as terras próximas às dos índios, a população da freguesia cresceria sem nenhuma restrição.
Mas, ao contrario do pretendido no plano referido, a transformação para freguesias resultou inicialmente em disputas por terra e dispersão dos habitantes originais, sendo contraditório a partir do próprio título do plano de 1803 que pretendia melhorar a “sorte” dos índios.
Ao tentar resolver um problema causado pela própria administração portuguesa, quando fundou os aldeamentos e impôs um complexo cultural originariamente europeu, aplicado em possessões portuguesas, com o avanço da colonização e crescimento da colônia se reduzia os índios a meras peças de trabalho, retirando e desorganizando o sentido coletivo do trabalho em sociedades cujo conceito trabalho estava envolto por categorias morais, sociais, rituais, e não físicas e econômicas como na Europa mercantilista.
A transformação em freguesia gerou a situação que produziu o documento citado abaixo, ou seja, uma disputa colono x índios pelo lugar denominado barreiro, onde o trabalho tinha características coletivas para os indígenas e conseqüentemente a fonte de matéria-prima era de uso comum, diferente da forma utilizada pelo colono que se caracterizou por tornar a terra de uso individual - utilitário para uso mercantil.
Os moradores da Escada se referiam no início do século XIX a um lugar chamado “barreiro” utilizado de forma comunitária por várias famílias para produzir “loiças.[3] :
“São o pobres Indígenas moradores junto a esta Cap.1a de N. S. da Escada (seguem quatorze nomes e famílias), assim todos Moradores de dentro do pateo como de longe, q. desde sua criação, forão Srs, de hum lugar chamado Barreiro, onde todo porocurão o Barro p.a as facturas de loiça pa serventia de suas casas como donde tirão algum vintem p.a os mais socorros, assim todos moradores de mao comum se servem dos d.os Barreiros:ex q. de repente o Espírito de ambição não dando lugar ao murador mais perto Manoel Joaq.m de Araújo, se faz S.r do d.o lugar sercando com caraguatás, afim de ficarem privados desta tão antiga posse, m.mo q. o d.o tivesse em seos títulos já se devia amordar aesta utilidade publica portanto  [...]".
Este documento também revela o traçado de um aldeamento com a referência a “moradores de dentro do pateo como de longe”, isto é, a Igreja e o terreno retangular em frente com habitações laterais (pateo) e possivelmente desde a criação do aldeamento os índios utilizavam a argila para manufaturas.
Nos anos que se seguiram, os conflitos envolvendo demarcação de terras e criações de animais continuaram a existir como mostra outro documento de 1834, mas, não envolvia mais os habitantes do ex-aldeamento.
Hoje, praticamente é o mesmo espaço de outrora que encontramos na Freguesia da Escada, quase duzentos anos depois, com outra destinação e sem os habitantes originais ou seus descendentes.
A grafia em itálico respeita o documento

[1] GUARINELLO,Norberto Luiz, História científica, história contemporânea e história cotidiana. S.P., Rev. Bras. De História, v. 24, n° 48, 2004 p.19
[2] - Documentos interessantes para história e costumes de São Paulo, volume 95, ed. Unesp, ( 1990) p.105
[3] - Acervo do Fórum, termos de conciliação,Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes

quinta-feira, 3 de março de 2011

Sobre vaga lumes e farofa de iça

Na 5º série do ensino fundamental tem início o aprendizado das temporalidades da História, a reflexão sobre o tempo histórico e os acontecimentos cotidianos, neste contexto, tem um papel importante no conhecimento da historia.
Uma possibilidade é levar o estudante à reflexão histórica a partir do acontecimento.
Hoje a intensa urbanização cobra seu preço e algumas coisas que eram comuns, principalmente nos bairros mais afastados do centro da cidade, estão em vias de desaparecimento ou já não mais existem.
Eram as noites povoadas por pisca-pisca ou vaga-lumes e em certos dias do ano aconteciam as revoadas de iças no Alto do Ipiranga, Jardim Camila, Braz Cubas, Vila Natal e outros bairros.
A iça é a fêmea da formiga saúva e a procura ou a “caça” desta para fazer “farofa” vem de longa data: “A içá torrada venceu todas as resistências, urbanizando-se mesmo, quase tão completamente como a mandioca, o feijão, o milho e a pimenta da terra. (...) Nos meses de setembro e outubro, em que saem aos bandos essas formigas aladas, buscava-as com sofreguidão, nos seus quintais, a gente de São Paulo, e ainda em pleno século XIX, com grande escândalo, para os estudantes forasteiros eram apregoadas elas no centro da cidade.[1]
Segundo o cartunista Maurício de Souza “Pássaros e crianças fazem a festa no tempo da revoada. Em vôos rasantes, os pássaros enchem o papo. Enquanto as crianças, empunhando galhos de árvores, correm atrás e abatem as içás.
A última vez que ‘cacei’ içás, quando ainda menino, foi lá num ‘olho de formigueiro’ atrás da igreja matriz de Santa Isabel, cidade onde nasci.
Iças torradas ou farofa de iça em Mogi das Cruzes, no Vale do Paraíba ou vendida no centro de São Paulo no século XIX, não era o único destino das formigas, pois, na década de 1880 a Casa Jules Martin comercializava formigas vestidas “em costumes da moda”.[2] 

Lampyris noctiluca. Disponível em 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vaga-lume.
Acesso 02 Março 2011.
 A outra diversão era o pisca-pisca. As emissões luminosas dos pirilampos atraiam as crianças que corriam na noite atrás de nuvens de vaga-lumes, para capturar algum, colocar em um pote de vidro ou caixa de fósforos e depois soltar.
As luzes ofuscantes da cidade (a urbanização caótica) fizeram desaparecer a magia da luz dos pirilampos.
Os vaga-lumes ou as revoadas de iças que muitos esperavam para fazer farofa ou paçoca são acontecimentos que se cristalizaram na memória.
Fernand Braudel, historiador francês que estudou a multiplicidade do tempo histórico atribuiu três categorias que se referem a diferentes temporalidades: o tempo dos acontecimentos, de breve duração, o tempo da conjuntura, de média duração (10, 20 ou mais anos) e o tempo de longa duração, o tempo dos séculos e das mudanças lentas ou das permanências.
Dizia Braudel: ”os acontecimentos são como vaga-lumes nas noites brasileiras: brilham, mas não aclaram”.[3] 
São acontecimentos de nossa história pessoal, da sociabilidade do homem comum, de uma história do cotidiano, rica de significados ao estabelecermos relações entre as diversas temporalidades definidas por Braudel.

Notas

[1] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras.Livraria José Olimpio Editora,RJ,1975, p64.

[2] TEIXEIRA, Dante Martins; PAPAVERO, Nelson; MONNE, Miguel Angel. Insetos em presépios e as "formigas vestidas" de Jules Martin (1832-1906): uma curiosa manufatura paulistana do final do século XIX. An. mus. paul., São Paulo, v. 16, n. 2, Dec. 2008 . Available from . access on 02 Mar. 2011. doi: 10.1590/S0101-47142008000200004.

[3] FREITAS, Marcos Cezar de(org.).Historiografia Brasileira em Perspectiva,editora Contexto,SP,1998,p265