sábado, 24 de dezembro de 2011

Natal e relações de gênero na Mogi das Cruzes de 1921


No Natal de 1921, o jornal A Vida, retrata em sua primeira página, uma crônica natalina que realça a solidariedade entre a população mogiana deste período: o costume de, após a Missa do Galo, os fieis se dirigirem à casa de outras famílias católicas para apreciar seus presépios, quando a “[...] cidade apresenta um movimento desusado.” Também o profano é mencionado, como o costume das crianças de apresentar sapatinhos atrás da porta de seus quartos para receberem presentes, bem como a utilização de costumes e refeições mais elaboradas. Neste espírito de solidariedade, também “[...] a pobreza faz o seu natal, dada a bela iniciativa de instituições e agremiações de caridade, que angariam donativos entre os corações piedosos, e assim, vemos também satisfeita essa classe desprotegida da sorte.”
No entanto, à aparente harmonia existente numa sociedade imaginada sem contrastes sociais, salta aos olhos quando, na mesma página em que foi publicada a Crônica de Natal, um artigo sobre o voto feminino (ainda em tramitação no Congresso), assinado por S.F.Q. revela, se não a desigualdade presente nas relações sociais, a tensão presente entre as relações de gênero. Eis o texto transcrito na íntegra.

O Voto Feminino

    O direito de voto às mulheres é – pode-se afirmar desde já – uma realidade, entre nós.
    Isto está a nos dizer o Congresso Nacional que a estas horas estuda o projeto com interesse e não está longe o dia em que o veremos nas mãos do Executivo para o seu sancionamento.
    E o belo sexo, que nos dirá? Estará de acordo com as leis governamentais que o coloca em igualdade de condições político-sociais com os seus semelhantes do sexo forte?
    Quererá a mulher deixar a sua simpática e nobre posição de mãe de família para correr às urnas e intervir na política com risco a uma tremenda catástrofe de transformar o lar numa torre de Babel?
    Sim, porque, imaginem lá. O marido político e dos aferroados; os filhos – pode muito bem acontecer – políticos e partidaristas apaixonados; todos de ideias e de partidos diferentes; si nestas condições ainda entra a mulher com sua opinião e teimosia (as mulheres são às vezes teimosas, pirracentas até por esporte), que será dessa casa?
    Imaginem numa época como esta em que os partidos fervem e as opiniões se divergem. Teríamos comida sem sal, sem tempero ou sem gordura, quando não, cabeças partidas ou divórcios em cartórios.
    Se na atualidade os ciúmes e as intrigas fazem das mulheres inimigas irreconciliáveis e mal encaradas entre si, que diremos se ainda se envolverem em questões políticas, que apaixonam e desnorteiam?
    Perderiam por certo o seu completo prestígio.
    A mulher brasileira compreende e interpreta muito diferentemente a lei que ora anda pelo Parlamento. Isto o sabemos. Ela por si acha inoportuna essa concessão de voto e abster-se-á de ir às urnas, mesmo porque não estará disposta a levar algumas pauladas nos dias de eleições.
    Quererá, é certo, conservar-se no lar, entre as carícias de seus filhinhos, que são todo seu afeto, e alimentará, como até aqui, no seu coração a verdadeira política – a Política do Amor.

    Mogi, Dezembro de 1921. S.F.Q.


Fontes

A Vida. Órgão do Partido Republicano Governista

25 de Dezembro de 1921 Ano 16, N. 687

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Observar e comprar, observar e desejar – O Natal de 1935

Uma possibilidade na produção de conhecimento histórico está na análise de periódicos locais e sua contextualização.
Na antevéspera do Natal de 1935, um dos ícones da sociedade industrial no século XX, assumia o centro das atenções:o automóvel.
O jornal “O Liberal” estampava em sua primeira página, do dia 22 de dezembro de 1935, o objeto de desejo da sociedade de consumo, que dava seus primeiros passos. Uma caravana com cinquenta carros desfilava pelas ruas da cidade, tendo a imprensa e autoridades como convidados.
Para aquele que só podia observar e desejar, os novos modelos do Ford V8 ficaria em exposição na agencia do município.
Mas a ideia pretendida de progresso como elemento fundamental para eliminar contrastes sociais, era desfeita na terceira pagina com a noticia do “Natal dos pobres” e a exposição da desigualdade presente na sociedade industrial. O Natal dos pobres era realizado desde 1911 e nas palavras do periódico “A Vida”, a realização da festa “...nas amplas varandas do Mercado Municipal … indica que nós já temos dado um grande passo na senda da civilização”. Presidia esta visão o conceito evolucionista de civilização, onde, o resultado de civilizar era o estado de adiantamento cultural e social.
As cronicas de Natal, a religiosidade da festa, presentes nas primeiras páginas de jornais locais em anos anteriores, davam lugar aos desejos de uma sociedade de mercado. As características solidarias da festa ficavam relegadas a pequenas notas no interior da edição.

Fontes:
Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes, jornal “O Liberal” 22 de dezembro de 1935, jornal “A Vida”, várias edições.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Clique Memória Alto Tietê

Estamos lançando em nosso Blog uma nova seção, a Clique Memória. A ideia é incentivar a postagem de fotos com pequenos textos relacionados ao patrimônio cultural de nossa região. Por patrimônio entendemos não apenas fatos materiais, como construções, paisagens, objetos etc., mas também o patrimônio imaterial, como reuniões de grupos folclóricos, cantares, elementos que expressem a religiosidade e demais manifestações culturais.
A mensagem deve ser rápida e imediata, a imagem fala por tudo! Envie seu clique para o email clique@dialeticacultural.net.
Nossa primeira postagem se refere à Capela de Santo Alberto:
Capela de Santo Alberto. Itapety, Mogi das Cruzes. Comemorações Dia de Santo Alberto.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Uma anarcofeminista no Theatro Vasques em 1911

Belén de Sarraga nasceu em Valladolid em 1874.

Foi feminista, leitora de Bakunin e Kropotkin, livre pensadora e militante anti clerical, tendo escrito “El clericalismo en América”.

Defendia a liberdade de consciência, a liberdade de instrução, a tolerância e os objetivos pacifistas

Na Espanha esteve presa durante alguns meses por pronunciar um discurso contra um general responsável pelo fuzilamento de um poeta, militou ativamente durante a segunda república espanhola e percorreu a América, do México à Argentina, passando pelo Brasil, promovendo concorridas palestras onde o tema era a mulher, família, Estado e religião.

Na cidade de São Paulo chegou em abril de 1911, onde, um jornal local a chamou de “Anjo da Revolução”. Em sua conferencia assinalava: “Diz-se com razão que a família é a base dos Estados. Tem estes de ser, portanto, o que a família é; a cultura, o valor moral, as tendências profundas e características da comunidade social são outros tantos reflexos das qualidades e dos defeitos daquela unidade básica. Mas a família por sua vez tem um centro, uma célula mater, uma base insubstituível: a mulher-mãe. Portanto, os destinos do Estado repousam, em ultima analise, na educação da mulher, na mãe de família.”

Em Mogi das Cruzes algumas pessoas se agitavam e formavam uma comissão para trazer Belén Sárraga à cidade, uns movidos pelo anticlericalismo das idéias de Sárraga, outros pelo humanitarismo e ainda outros pelas posições políticas sobre o poder (poder dos homens sobre as mulheres, poder de Estado, etc), pois, a cidade apresentava um alto índice de imigrantes espanhóis e italianos que compartilhavam destas posições.

A cidade se preparava para receber o “Anjo da Revolução” e o vigário da Matriz dizia: “Chegou nesta cidade a exploradora espanhola Bélen Sárraga, espanhola expulsa de sua pátria por causa das ideias subversivas que pregava. Os católicos desta cidade não tomaram parte nas festas dessa espanhola. As senhoras (mais de mil) prottestaram contra a vinda dessa anticlerical.”

No dia 22 de junho de 1911, uma quinta-feira, Bélen Sárraga chegava por trem de subúrbio e era conduzida ao Teatro Vasques para falar sobre um tema que envolvia formas de poder:”A família e a Igreja”.

Apresentada por um ex-sacerdote católico, iniciou sua fala as nove e trinta e as onze horas se dirigia ao hotel onde ficou hospedada, acompanhada por “uma massa compacta” segundo o jornal “A Vida”.

No dia seguinte, seu destino era novamente a capital e outras peregrinações em torno da liberdade e das vontades do ser.

Fontes:

Livro do Tombo da Cúria Diocesana de Mogi das Cruzes

Jornal “A Vida” 25/06/1911

sábado, 12 de novembro de 2011

A escravidão em Mogi das Cruzes II 1872


A leitura e interpretação dos censos indicam possibilidades de pesquisa em História.
A população livre no município de Mogi das Cruzes pelo censo de 1872 era de 15033 habitantes, sendo 10301 em Mogi das Cruzes, 1788 na Freguesia de Itaquaquecetuba, 1463 na Escada e 1531 em Arujá. No município de São José do Paraytinga havia 3042 livres.
Dentre os livres havia no recenseamento de 1872 as seguintes categorias: sexo, estado civil, brancos, pardos, pretos, caboclos, religião, nacionalidades, instrução e casas.
O quadro geral da população escrava contava com as categorias sexo, estado civil, raça, religião, nacionalidade e grau de instrução.
A região de Mogi das Cruzes contava com 1496 cativos, Santa Isabel 1105, Santa Branca 967 e São José do Paraytinga 161.No quesito instrução, a cidade de Mogi apresentava 1% da população escrava alfabetizados, enquanto em outras regiões esse número era menor ou nulo e somente Itu apresentava número semelhante a Mogi. Isto poderia indicar as características da região e da escravidão urbana , voltada para os escravos de ganho.
No quadro referente a “defeitos physicos” encontramos as categorias Livres – Escravos, com os seguintes números:Para os livres, entre cegos, surdo mudos, aleijados e problemas mentais encontramos por volta de 15% da população da região, sendo que o número de mulheres com problemas mentais superava em quase 40% o número de homens, o que poderia indicar as condições em que viviam e eram tratadas as mulheres.
Entre os escravos, em números absolutos, a maior deficiência física constatada no recenseamento, se dava na categoria “cegos”, o que confirmava o trabalho pioneiro do médico Manoel da Gama Lobo, "Da oftalmia brasiliana", publicada originalmente em 1865 sobre a deficiência nutricional causada pelas degradantes condições de vida do escravo e os problemas na visão decorrentes desta deficiência nutricional.
O trabalho excessivo, a alimentação insuficiente, os castigos corporais em excesso transformam estes entes miseráveis em verdadeiras máquinas de fazer dinheiro; sem direito de casamento, sem laço algum de amizade que os ligue sobre a terra, eles perdem o ânimo, sendo vítimas de opilações, úlceras crônicas, caquexias e todas as moléstias que são ocasionadas por uma alimentação insuficiente.” (Gama Lobo, 1865a, p.432).




VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de; SANTOS, Leonor Maria Pacheco. Tributo a Manoel da Gama Lobo (1835-1883), pioneiro na epidemiologia da deficiência de vitamina A no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, Dec. 200Availablefrom. access on 26 Mar. 2011. doi: 10.1590/S0104-59702007000400013.



domingo, 30 de outubro de 2011

Anjos e Demônios. O caso Landell

Na ultima postagem sobre o Padre Landell recordamos que em 1909 o Arcebispo Metropolitano de São Paulo relatava: ...Encontramos a parochia ainda sob a lamentável impressão de dois gravíssimos escândalos que aqui se deram...” e possivelmente se referia ao exorcismo praticado pelo Pr Landell.
A questão do exorcismo nos remete a uma série de observações, escritos científicos-filosóficos e a uma invenção de Landell, contemporânea a sua presença como pároco em Mogi das Cruzes.
Para aprofundar a compreensão de sua estada em Mogi das Cruzes devemos rememorar que Padre Landell é lembrado como o inventor do radio, mas seria uma injustiça se apenas esse invento lhe fosse atribuído.
No início dos anos 1980, um grupo de trabalho de engenheiros de telecomunicação da Telebras considerou Padre Landell como precursor da Televisão, do Teletipo e do controle remoto por rádio1 e além destes inventos deixados em croquis, podemos lhe atribuir o estudo da transmissão de voz através de fontes de luz.
A produção de conhecimento por parte do pároco era imensa e entre seus interesses intelectuais estava o de compreender o que envolve o ser humano e não deixava de tratar de uma aproximação entre ciência e religião.
A conciliação entre ciência e religião não é um tema novo e recentemente foi tratado no filme Anjos e Demônios. Sobre o tema assim se manifestava Landell no início do século XX.
(...) Santos Dumont está bem, porém o seu colega contemporâneo vive esquecido porque cometeu um crime, o de querer sair da sacristia para mostrar ao mundo que a religião nunca se opôs ao progresso da humanidade(...)”
No caso de exorcismo em Mogi das Cruzes, Landell afirmava que o havia realizado com o acompanhamento de "instrumentos e aparelhos" científicos. Ora um de seus inventos que foi contemporâneo de sua estada na cidade era a bioeletrografia ou fotografia Kirlian como ficou conhecido mais tarde esse tipo de fotografia, descoberta na URSS em 1939, sendo portanto, a descoberta de Landell bem anterior.
Nesse tipo de fotografia que mostraria a energia que circunda a matéria (sem a aceitação unanime de cientistas), chamou de perianto os efeitos eletroluminescentes, e chegou entre outras à seguinte conclusão, sobre o perianto e fotografia:”que, se esse indivíduo estiver sob a ação do hipnotismo ou de qualquer outro estado anormal capaz de mudar-lhe a personalidade , o seu perianto,nesse caso, apresentara as feições da personalidade que ele supõe ser no momento.”2
Mais tarde, dando sequencia ao processo de suas deduções escreveu:”Nestes estados, notam-se modificações mais ou menos pronunciadas de personalidade, seja pelo físico, seja pela moral, porque, geralmente falando, ele toma o porte, a atitude, os gestos, a voz e, até, os mesmos defeitos ou imperfeições característicos dos indivíduos que ele supõe ser. Ele dá corpo, vida, expressão, numa palavra, a todos os fantasmas da imaginação, e com eles conversa, come, ri e se diverte, como o faria na realidade se se achasse em tais circunstancias e em seu estado normal.”3
Os fantasmas da imaginação, nossos anjos e demônios que Landell ousou compreender e não foi compreendido.
O país perdeu.

 
Fontes:
Jornal “A vida”, Mogi das Cruzes 1907
Cúria Diocesana de Mogi das Cruzes
Almeida, Hamilton.Padre Landell de Moura-Um herói sem glória, editora Record, 2006


1Almeida, Hamilton.Padre Landell de Moura-Um herói sem glória, editora Record, p.306
2Idem, p.141
3Ibidem, p. 192

domingo, 16 de outubro de 2011

O mariscar e a febre no Itapety


Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss ilumina aquilo que irá tornar-se o principal eixo teórico de toda a sua vasta produção científica: a relação natureza e cultura e a subsequente indagação sobre a natureza do Homem, que para o autor só poderá ser convenientemente compreendida quando encontrarmos o caminho de volta à compreensão de como o Homem está relacionado à Natureza.
Formular o objeto da investigação nesses termos implica reconhecer que a vida social, em qualquer agrupamento humano, não é um caos incompreensível, mas se ordena através do costume. Que esses costumes, muitas vezes incompreensíveis para nós, possuem significado para os membros da sociedade em questão. O que caracteriza a "natureza humana" é justamente o grau de ausência de orientações intrínsecas, geneticamente programadas, na modelagem do comportamento.
Despojada dessas orientações, toda ação humana e a própria sobrevivência da espécie ficam condicionadas à constituição de orientações extrínsecas, construídas socialmente através de símbolos. A ideia fundamental é a de que a vida social é ordenada através de símbolos organizados em sistemas. O corolário dessa concepção é a negação de uma base natural (e biológica) para a sociedade.
É justamente na busca pela compreensão do que é ser humano e na identificação dos grandes universais humanos, que Lévi-Strauss desperta nosso interesse sobre a necessidade de melhor mapearmos os mecanismos envolvidos no processo de comunicação e interpretação simbólica, em especial nos sistemas classificatórios que procuram dar conta dos signos produzidos na relação do homem com a natureza. Nesse sentido, parodiando Lévi-Strauss, os animais – e também as plantas, em qualquer ambiente humano, (e muito antes de serem coisas boas ou não para comer), servem como coisas boas para pensar. A cultura portanto, “… não pode ser considerada nem simplesmente justaposta, nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido, substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem.”(1)
Orientados por estes princípios básicos, é que procuramos transcrever este depoimento, que muito além de retratar a memória pessoal, revela parte das relações sociais imbricadas na tecitura da teia social formativa da sociedade mogiana atual e em especial, do ambiente rural nas primeiras décadas do século XX.
O Sr. José Mello, nascido em 4 de Março de 1936, filho de Benedito de Souza Mello e de Paulina Maria de Souza Mello, recorda de seus tempos de criança no bairro do Itapeti onde, por ocasião da Semana Santa (entre os meses de Abril e Maio), abundavam os cardumes do camarão de água doce (Macrobrachium sp), popularmente designado como Pitu. A pesca deste crustáceo era exercida durante todo o ano como complemento alimentar mas, seja pela coincidência do costume católico de não ingerir carne, seja pelo aumento da ocorrência, a captura ampliava-se durante este período.
A coleta é feita com uma peneira entretecida com pequenas fasquias de taquara de lixa ou pinima.(2) Ao trabalho envolvendo a captura, chamam por mariscar. “Por ocasião da Semana Santa, mariscava-se por 10 minutos e a gente recolhia uns 2 quilos de camarão.”
Hoje, o camarão tem uma ocorrência extremamente reduzida na região, provavelmente devido à contaminação dos córregos e ribeirões pelo uso não controlado de defensivos agrícolas. Mas mesmo àquela época de fartura, peixes e camarões começaram a escassear.
O motivo então, devia-se ao fato de os filhos da proprietária da Fazenda Maria Leite, “Nhá Maria”, localizada às margens do rio Lambari, passarem a utilizar a pesca com timbó com muita frequência. Os peixes iam descendo, mortos, pelo Lambari até o (rio) Paratey”.
Mesmo nos períodos de menor abundância, o mariscar era constantemente empregado. Com o camarão, preparavam-se bolinhos com farinha de milho, consumidos assados ou fritos. Mas o mariscar envolve alguns perigos: a gripe e a febre: “Nos meses de Janeiro até Março, a pessoa marisca cedinho, na madrugada, e à noite, no dia seguinte pode ficar doente, com febre. A febre pode matar. Para curar, apenas curador.
Me lembro de Dona Crava (Cravelina Pereira), avó do senhor Angenor Pereira, ardendo de febre, no meio do dia, após mariscar pela manhã. Mandou chamar uma curandeira (de quem não lembro o nome). Morava retirada do bairro, veio a cavalo, ainda com a luz do dia e ordenou pro marido de Dona Crava:
__ Nhô Paulo, vai lá no pasto e procura a Erva de Passarinho(3) no pé da Vassoura Branca (provavelmente Sida sp)!
__ Mas Dona, nunca vi Erva de Passarinho na Vassoura Branca!
__ Vai ali, que Vosmecê encontra.
A erva localizada e retirada da árvore é cozida e ainda quente, administrada. Logo após, a enferma adormece.
“Vai dormir uma hora”. Diz a curandeira. E realmente, uma hora após, Dona Crava acorda chamando por uma das filhas, reclamando de fome, pedindo o que comer. Estava curada!
Sem assistência médica, pública ou privada, semi-isolados, os habitantes do Lambari tratavam as doenças cotidianas com curadores e benzedores, o único socorro. Muitas as doenças pulmonares, a febre amarela, a varicela e o tifo: “A pessoa ia apodrecendo por dentro, fedia”. Como preventivo, chá de marcelinha.(4)
Nos anos 30-40, Miguelzinho, um dos mais reconhecidos curadores da região, tinha por moradia as proximidades da Freguesia da Escada, em Guararema. Negro e cego de um olho, preparava garrafadas. Pela distância e dificuldade de transporte, o enfermo era representado por um emissário – normalmente parente próximo – que narrava ao benzedor os sintomas do doente. A partir desta anamnese cabocla, Miguelzinho preparava a garrafada. Em certas ocasiões, após o preparo, olhava o recipiente contra a luz e já ia avisando: “Pode levar, mas esse aí não tem mais jeito.”. Era comum acontecer, quando do retorno, o emissário encontrar morto o parente...
Mas o que nenhum curador ou benzedor dava jeito mesmo era à febre. Ela vinha entre os meses de janeiro e março. Não era a “febre do macaco”, nem gripe, apenas a febre. Altamente contagiosa, atingia os caboclos sem distinção e com certa preferência aos mais fortes:
No Engenho Beija-Flor, tinha um caboclo que montou moradia recente. Era um caboclo forte, bom de trabalho, que trabalhava 12, 14 horas seguidas. Num final de semana, estava amolando a enxada prá capinar a cana. Na segunda-feira, após o trabalho, deitou-se com febre. Na terça-feira estava morto.
Também o ajudante de meu pai morreu assim, em um dia.

O último recurso, era a “dosa acônica” - acônico(5) + beladona(6). A “dosa”, pela toxidade das substâncias empregadas no composto, era administrada em pequenas gotas, diluída em água. Para isso, utilizavam de um pequeno dosador, um pequeno bastão de vidro maciço em forma de L, que mergulhado no recipiente, retinha pequena parte do preparado, extremamente viscoso. Curava a gripe, mas não a febre.
A febre provocava tremores de frio e suadouros. “Mexia com a ideia da pessoa. A pessoa ficava andando pela casa, a esmo, agitada. Depois morria.”
Não só da febre morria-se no Itapety. A varicela também grassava: “o corpo todo pipocado, em carne viva” e também, a “bexiga preta”:
Perto de Jacareí, muita gente morria com a bexiga. Passava um carroção pelo bairro levando os corpos. As pessoas se escondiam do piloto e do ajudante, mato a dentro, com medo do contágio.
Uma vez, levaram um farmacêutico, a cavalo, prá prestar socorro. Um casal morreu, horas seguidas, um após o outro. Nas vizinhanças, morria o cunhado.
Meu pai, Benedito de Souza Mello, era capelão da Capela do Santo Alberto e benzedor bastante conhecido aqui no bairro do Itapeti. Era o responsável por preparar os enterros.
Os médicos da cidade (Mogi das Cruzes), por total falta de recursos, não conseguiam realizar as vistorias sanitárias necessárias, e quando um doente morria, meu pai se encarregava de conseguir o atestado de óbito junto aos médicos.
Àquela época, tinha o Dr. Rosa(7), o Dr. Deodato Wertheimer e o Dr. Lamartine. Ir até Mogi das Cruzes, representava 3 horas a cavalo, ou 4 horas no lombo de mula ou burro. O Dr. Lamartine era o mais complicado, pois fazia questão de visitar o falecido prá expedir o atestado. Já com o Dr. Rosa, era mais simples, pois ele conhecia bem meu pai e também porque gostava de “chutar” (beber).
Meu pai o procurava, primeiro pelos bares, quase nunca no consultório, e no bar, o Dr. Rosa perguntava:
__ Oi Mello! Morreu gente por lá, não foi?
Caminhava com papai, do bar ao consultório e lá arrematava:
__ E o tipo da doença?
__ Febre, seu Doutor.
E daí, encaminhava o atestado de óbito, sem nada cobrar …


Notas

(1) LEACH, R. As idéias de Lévi-Strauss. São Paulo: Cultrix, 1970 :40-48.
(2) O Sr. José Mello e seu irmão, Joaquim de Souza Mello, insistem em fazer uma distinção entre peneira e apá. Não só conhecem a atribuição tupi mas a diferenciam funcionalmente: na peneira, o entretecido é maior, de forma a permitir o escoamento rápido da água, já no apá, as malhas encontram-se unidas, fechadas. A apá é utilizada para “abanar” o arroz, separando os grãos previamente pilados da casca,
(3) Erva-de-passarinho, Struthantus flexicaulis. O suco das folhas frescas, é recomendado para bronquites, pneumonia, pleurisias, hemoptises, dores no peito, pontadas e outras afecções respiratórias. O decocto, para doenças do útero e hemorragias. (BARBOSA, Edglay Lima. Arte e Ciência. 05 Fev 2008. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/erva-de-passarinho-proliferacao-ou-erradicacao/4029/).
(4) A marcelinha, marcela ou marcela-do-campo (Achyrocline sp), possui origem na região sul e sudoeste do Brasil, dotada com as seguintes propriedades terapeuticas: Antiinflamatório, antiespasmódico (reduz contrações musculares involuntárias) e analgésico, sedativa e emenagoga. Disponível em CULTIVANDO. http://www.cultivando.com.br/plantas_medicinais_detalhes/marcela_do_campo.html).
(5) Aconitum napellus. Trata-se de um veneno de ação potente e rápida. Seu uso deve ser realizado em doses homeopáticas. É indicado em casos de asma, bronquite, congestão pulmonar, coriza, doença inflamatória, febre com delírios, feridas na pele, gota, gripe, hipertrofia do coração, laringite aguda, nevralgia facial, nevralgia lombociática e do trigênio, palpitação nervosa, pneumonia, reumatismo, tosse espasmódica e úlceras (PLANTAMED. Aconitum napellus L – Acônito. Disponível em http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Aconitum_napellus.htm).
(6) Planta de extrema toxicidade em todas as suas partes, a beladona (Atropa belladona), rica em atropina e escopolamina, possui efeitos terapêuticos utilizados no tratamento da bradicardia sinusal, na dilatação pupilar no Parkinsonismo, na prevenção de cinetose, como pré-medicação anestésica para ressecar secreções e em doenças espásticas do trato biliar, cólico-ureteral e renal, entre outras indicações (ERVAS e Insumos. Disponível em http://ervaseinsumos.blogspot.com/2009/03/beladona.html).
(7) Dr. Luiz de Azevedo Rosa.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A Escravidão em Mogi das Cruzes - 1874


Em 31/01/1874 reuniu-se na cidade de Mogi das Cruzes a junta de classificação de escravos onde, de acordo com o que determinava a Lei do Ventre Livre de 1871, todos os escravos do Império deveriam ser classificados com declaração de nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho, filiação e os escravos que não fossem classificados seriam considerados libertos.
Instituiu-se um fundo de emancipação com receita de diversas fontes e desta maneira, “deu-se a classificação dos escravos para as alforrias pelo fundo de emancipação tanto em relação a famílias, como de indivíduos, na forma do Regulamento a que se refere o decreto nº 5135 de 13 de novembro de 1872 Art. 7º nº III”.
Nesta classificação foram catalogadas 1098 escravos sendo que em recenseamento do ano de 1872 a população mogiana era de 16867 habitantes.
A “classificação dos escravos pa serem libertados pelo fundo de emancipação” compreendia as categorias já citadas na lei ou seja na identificação de cada escravo constava além do nome, a cor, idade, estado, profissão, aptidão para o trabalho e outras como, pessoa da família, moralidade, nome do senhor e um campo para observação. Colocando na ficha de classificação categorias que não estavam na lei como moralidade e pessoas da família, a lista do fundo de emancipação servia para controle e submissão até o momento de liberdade pois estabeleciam-se critérios para a alforria.
Além dos escravos utilizados na lavoura, a lista possuía em sua grande parte, registros de ocupações urbanas como costureira, pagem, cozinheira, bordadeira, engomadores, carpinteiro, alfaiate, lavadeira e jornaleiro (escravo de ganho).
A extinção lenta e gradual da escravidão atingia seu objetivo com a lei do Ventre Livre cuja redação dava margem a interpretações dúbias.
Fonte :Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Capelas e Ermidas: a Capela do Caetano

Normalmente localizadas em locais distantes das povoações urbanas, nos bairros e locais ermos, são bastante comuns nas antigas Casas Grandes do Nordeste, nas Fazendas Mineiras e Paulistas, dentro ou no entorno das sedes.
Conhecidas como "Capelas de Santa Cruz", no Vale do Paraíba e entorno, muitas serviram para marcar a fundação de um vilarejo ou bairro, tendo sua origem relacionada à proteção de santos padroeiros, de modo que as santas-cruzes, como são denominadas as capelinhas de beira de estrada, apareceram na sequência. 
 
Nelas eram colocadas imagens quebradas, pois acreditava-se não ser de bom presságio possuí-las dentro de casa ou simplesmente jogá-las. 
Estas pequenas capelas domésticas, ou ermidas, para serem consagradas ao ofício religioso, necessitavam de um procedimento burocrático que envolvia as autoridades eclesiásticas, geralmente extremamente moroso e nem sempre levado a efeito. Este distanciamento da tutela do clero, provavelmente deu margem à inserção de marcas da religiosidade popular e do papel social destes oratórios.


A Capela de Santa Catarina, ou simplesmente "do Caetano" reflete bem esta conjuntura:
Localizada no bairro rural do Itapeti, situada numa encruzilhada, entre a Estrada do Lambari, Municipal e Goiabal, sua construção remete ao final do século XIX, pelo Sr. Caetano de Almeida. Construída em taipa, com aproximadamente 12 metros quadrados. Seu salão abriga pequenos oratórios, aonde são depositados pela população local, imagens de santos protetores, pequenas cenas bíblicas e objetos reveladores de intenso sincretismo religioso, como orixás, caboclos e imagens de "santos expurgados" pelo catolicismo oficial.
Tradicionalmente, sempre no último sábado do mês novembro,  a população do bairro celebra no local, culto à Santa Catarina.


Referências

Museu do Oratório. Oratórios e Ermidas.  Casa Capitular da Igreja N. Sra. do Carmo,Ouro Preto, MG. Disponível em http://www.oratorio.com.br/port/colecao_txt.asp?id_categoria=5&id_subcategoria=0.

ALCANTARA, Ailton S. de. Paulistinhas: Imagens sacras, singelas e singulares - São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. Orientador: Percival Tirapeli, p. 61.
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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A gruta de Santa Teresinha



A serra do Itapeti, desde o século XVII teve a presença e o trânsito da religião junto ao avanço da colonização rumo ao Vale do Paraíba.

Já nos anos 1800 a religiosidade popular esteve presente na habilidade dos santeiros que moldavam o barro e espalhavam imagens de culto doméstico, denominadas paulistinhas.

Pelos caminhos antigos do Itapeti, em direção a cidade de Mogi das Cruzes, havia oratórios de beira de estrada ou pequenas e diminutas capelas numa caminhada de horas das paragens “detrás da serra” até o centro urbano. Era utilizada uma trilha que descia onde é hoje o Jardim Aracy ou a vereda que ia dar no lugar que conhecemos por bairro do Rodeio, além de outras mais.

É do ano de 1888, o relatório da Comissão Central de Estatística da Província de São Paulo que, ao descrever o município de Mogi das Cruzes dizia:
“ Existe no município, no alto do Itapety, uma gruta interessante, que é freqüentemente visitada por muitas pessoas”.

O “Almanaque de Mogi das Cruzes”, trinta anos mais tarde assim se referia ao lugar, ao lado da trilha de tropeiros, que recebia a visita das “gentes da cidade”: 

Penetrando-se nela, desce-se uma escada natural, de dez degraus de pedra (...).Acabando-se de descer a escada, encontra-se outra cavidade de abóboda baixa onde corre uma água pura e cristalina(...).Esse é outro recanto, muito apreciado pelos mogianos...que aí vão em numerosos grupos”.

Provavelmente por volta dos anos 30 foi construído, acima da entrada principal da gruta, um oratório dedicado a Santa Teresinha, freira carmelita canonizada em 1925.

A partir deste momento a gruta passa a exibir, além de seu atrativo natural, uma função religiosa, incorporando a peregrinação e as orações.
As fotos dos anos 30, 40 e 50 mostram o grande número de pessoas que subiam a serra em domingos e feriados como o 1º de Maio.








Hoje no alto do Itapeti, com vista para a cidade, repousa no alto de uma rocha um oratório com a imagem semi destruída de Santa Teresinha.

Lugar conhecido e freqüentado desde o final do século XIX, no século XXI a intolerância destruiu o rosto da imagem, que não olha mais na direção da cidade.

Fontes:

AESP
Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes
Attwater, Donald.Dicionário de Santos, 2ºed.pag.274

Veja mais fotos da gruta no Arquivo Digital Mogiano

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Mogi oculta: lugares e pontos de devoção popular

Mogi se orgulha de sua História de 400 anos, mas se esquece muito rápido desta mesma história. Uma cidade quatrocentista que mostra em seu patrimônio material, aspectos ocultos e simbólicos, raros à percepção da população.
É importante para a região discutir a História local em um contexto onde, a região do Alto Tietê, que atravessa um crescimento demográfico grande, gera demandas das populações novas que não conhecem o lugar, sua cultura e sua história, assim como dos habitantes antigos, que se voltam para a manutenção de sua identidade, por conta deste crescimento da cidade e outros fatores que, em uma sociedade globalizada favorece a fragmentação destas mesmas identidades.
Com a modernidade estes símbolos passam despercebidos pelos cidadãos. Monumentos como o Obelisco, a Gruta Santa Terezinha,  ou mesmo os vitrais expostos na Catedral de Sant’Anna, são artefatos excluídos da  percepção do mogiano.
Inúmeros fatos contribuem para este cenário de perda cultural, tais como, a poluição visual e o desenvolvimento urbano que acarretam desvios de olhares sobre uma cidade que enraíza em seu intimo aspectos esquecidos, ocultos e desconhecidos.
Trabalhar a História, num sentido amplo, significa conhecer e revelar o passado. Mas podemos perguntar: há uma seleção do que se deve conhecer? Quem seleciona e a quem serve esta seleção?
Para melhor desenvolver esta linha de raciocínio, podemos pensar no significado de três palavras: velar, desvelar e revelar.
Se procurarmos o sentido de velar, vamos encontrar a definição, esconder, dissimular, prejudicar a formação da imagem. Assim, para conhecer uma dada realidade, necessitamos, obrigatoriamente, passar pelo estágio de desvelar que significa aclarar, elucidar, para então atingirmos o sentido de revelar, significando descobrir, mostrar, divulgar.
Há um esquecimento, e neste sentido um ocultamento, onde o conhecimento histórico é sempre expressão de uma postura política: se de um lado são contraditórios (como a própria história), por outro, são percebidos segundo o tempo, o lugar, a classe e a ideologia (e por isso são ocultados). Cabe portanto, ao historiador, procurar evidenciar estes fatos, sem deformações e ocultações, como evidenciado na iconografia memorialista, referente ao quarto centenário da cidade, ao  apresentar uma certa noção de progresso e desenvolvimento, viável apenas a partir de uma representação dos tipos humanos presentes na região.
De outro lado, em pontos de devoção popular na cidade de Mogi das Cruzes, o catolicismo tem uma função mais social do que religiosa, exibindo um caráter utilitarista, capaz de gerar um sentimento de identidade e também relações de poder.
Aguardem, nas próximas postagens continuaremos a explorar esta mesma temática - esquecimento/ocultamento - com novos documentos e imagens reveladoras deste imaginário.
Antonio Sérgio Azevedo Damy
Angelo Nascimento Nanni
Glauco Ricciele P. L.C. Ribeiro
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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Os caminhos de ontem: a Estrada Geral em 1843

Jornais e TVs apontaram o atraso nas obras da rodovia Mogi das Cruzes-Via Dutra, passando por Guararema e Jacareí. Entre outras intervenções as obras irão contemplar recapeamento, correção de traçado e elevação do leito da estrada.
Antes de ser um assunto corriqueiro, a condição das estradas e a circulação de mercadorias e principalmente pessoas é fundamental para a análise da região e alguns problemas de hoje são problemas de ontem.
Há um documento de 1843, com 16 páginas que nos apresenta o traçado da Estrada Geral que passava por Mogi em direção ao Rio de Janeiro.
Neste “Relatório do estado em q se acha a Estrada Geral q segue d’esta Villa de Mogi das Cruzes a Capital da Província e a Corte do Rio de Janeir°, consertos de q necessita e orçamento das despesas que poderá importar sua completa redificação a quase dez legoas de estençao” é indicado as sessões da estrada que precisam de intervenção, quais as obras e seu custo, no traçado de 66 quilômetros que passava pela cidade até a divisa com Jacareí.
Saindo de Mogi das Cruzes em direção ao Vale do Paraíba os caminhos ganham contornos e o relatório apontava :“Em seguimento d’esta estrada thé a Fazenda do Carmo em Sabaúma necessita ser reparado de enchada em partes aterrar alguns lugares e dar esgotos necessários as águas roçar todo o mato q em partes já para o transito(...) alargala em partes thé vinte parmos pois lugares há q mal passão dous cargueiros a par(...)como tão bem levantarem-se alguns pequenos aterrados, e pontes, p.ª fazer correr as aguas ”.
A importância das obras era justificada pelo “...grande tranzito de tropas de caffé, não só desta Villa, como das villas vizinhas que por Ella exportão e importão os gêneros de seo consumo, as tropas soltas, Boiadas, q por Ella tranzitão no tempo da Feira e os recursos que todos os viajantes encontrão n’este Município tão antigo e conhecido por todos...”.
Nos caminhos antigos há uma memória de uma formação histórica regional onde podemos aprender e apreender a circulação de tropas de comercio, negociantes e pessoas diversas, o ir e vir de viajantes, dos habitantes da região, enfim dos que deram vida ao local.
Fonte: ALESP

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Um crime na Freguesia da Escada em 1854

O trabalho do Historiador por vezes incorpora a analise de documentos de ordem jurídica para revelar aspectos do cotidiano e da vida em períodos diversos da História. Através da analise desta documentação denominada geralmente de Autos Crimes, podemos conhecer costumes, padrões de comportamento, religiosidade, captar a intensidade dos relacionamentos, dos indivíduos e suas vontades, necessidades, dos atos e seus desdobramentos, do cotidiano, enfim do que chamam rotina e outras características culturais de uma dada sociedade que nos é revelada com a utilização destas fontes.
Autos Crimes é o nome genérico dado aos documentos cartoriais e judiciais composta, de processos criminais, auto de corpo de delito, execuções de sentença, apelações, e termos de bem viver. Esses processos passavam por diversas instâncias, tais como o juízo municipal, o juízo de direito, juiz de paz, a polícia e as delegacias.
Em postagens anteriores já utilizamos esse tipo de documentação para falar sobre costumes na primeira metade do século XIX, onde, as simples ações cotidianas das pessoas incomodavam as autoridades constituídas e muitas vezes eram tidas como ameaça a ordem.
Continuando com essa documentação vamos explorar um pouco as possibilidades de um Auto de Corpo de Delito.
Por volta do dia 10 de dezembro de 1854 o inspetor de quarteirão da Freguesia da Escada conversava com duas pessoas perto das dezoito horas, quando, na frente da casa vizinha de onde estava e conversava com lavradores do local ouviu-se uma discussão:
-- Isto é muito desaforo!Não há quem agüente!Saia agora! Dizia o freguês para o vendedor de carne.
Viu-se então o carniceiro com uma foice na mão, falar: -- Eu dou neste sujeito!
-- Não dê! Replicou um dos homens que conversava perto do local e que neste momento acudia o conflito.
O freguês, Albino Vieira levantando o porrete que havia conseguido, acerta o maxilar de Antonio Joaquim da Silva ensangüentando-o e pondo-o fora de combate.
O inspetor de quarteirão prende Albino Vieira em meio ao ajuntamento de pessoas que corriam para o local e o solta no dia seguinte.
Os acontecimentos descritos fazem parte de um auto de corpo de delito[1] que Antonio Joaquim da Silva pede ao subdelegado para realizar, instaurando processo onde são ouvidas quatro testemunhas:
“Diz Antonio Joaquim da Silva morador na capella de Nossa Senhora da Escada d’este município que no dia 10 do corrente às ave - maria, estando mança e pacificamente em sua casa, havendo nesse dia cortado uma rez, cuja carne durante o dia vendeo aos seus fregueses, ocorre porem que naquele dia e horas mencionadas veio a casa do suppe Albino Vieira se o mmo suppe lhe dava alguma carne fiada, ao que o suppe lhe respondeo que lhe não podia vender fiado, por isso que o suppdo lhe devia há já perto d’um ano ...pelo que resolvera não lhe fiar mais coisa alguma...”[2]
Continuava a exposição do conflito e o subdelegado ouviu as testemunhas que eram todos moradores da Freguesia da Escada, alguns lavradores e um negociante. Todas diziam ter “mais ou menos” tantos anos. Este é um padrão que se repete, e segundo Norbert Elias ”...Torna-se explicável que, nas sociedades sem calendário e nas quais não existem, portanto, representações simbólicas exatas da sucessão dos anos, os homens não saibam ao certo sua idade”[3]
Podemos ver nas fontes primarias, ou seja, nas reclamações que dão origem aos termos jurídicos a existência do calendário, que marca o inicio e o andamento do processo judicial, no entanto, este permanece de uso das instancias jurídicas.
O saber partilhado entre o grupo social não inclui o uso do calendário, mas isto não significa que não existam “representações simbólicas” ou “ símbolos sociais” que possibilitem marcar a sucessão dos anos. Elas existem e são de caráter religioso, como as festas de santo, “horas de ave - maria” ou seja o tempo marcado pela presença da Igreja em uma região em que mesmo os nomes de orientação da moradia exibem esse caráter sagrado, pois lemos nas fontes, “ moro na capella da Escada, moro na Freguesia de Nossa Senhora da Escada”
A orientação pela “hora da ave - maria” mostrava as convenções de uma sociedade pré-industrial, onde na definição dada por Norbert Elias “...o tempo não se reduz a uma “idéia” que surja do nada, por assim dizer, na cabeça dos indivíduos. Ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estagio de desenvolvimento atingido pelas sociedades(...) A imagem e a representação do tempo num dado individuo dependem, pois, do disponível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo...”[4].
Em outra oportunidade outro Auto de Corpo de Delito revelou brigas com sérias conseqüências, entre moradores das cercanias de Mogi das Cruzes que se dirigiam para uma festa religiosa e um grupo de operários imigrantes que trabalhavam na construção da ferrovia e em determinado momento os imigrantes “mangaram do santo” no dizer das testemunhas. Estas disputas revelavam repertórios culturais distintos.
OBS: Em 26 de junho de 1855 foi lavrado um termo de desistência da acusação crime contra Albino Vieira devido falecimento de Antonio Joaquim da Silva, possivelmente em conseqüência dos ferimentos.
As letras em itálico respeitam a grafia original do documento

[1] -Acervo do Forum, Auto de corpo de delito, Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes
[2] -idem
[3] -Elias, Norbert, Sobre o tempo, Jorge Zahar editor, RJ, 1998, p.11
[4]- idem, p.15

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Congos, Congados e Moçambiques na Serra do Itapety (1929)

Antonio, Froes e Manuel dos Santos. Folia de Reis na Serra
do Itapety, Junho 2000
.

Nas celebrações em homenagem ao Divino Espirito Santo as danças constituem uma de suas principais atrações. Proibidas no período da escravidão, muitas delas, em especial a Congada, o Moçambique e a Marujada conseguiram inserir-se neste contexto.
Verdadeiros bailados populares, estas “danças dramáticas”, no dizer de Mário de Andrade (1937), tem essencialmente uma função religiosa:
"Elas são expressões do sagrado, diversificadas pelo espírito lúdico, como as danças de São Gonçalo, Cururu e Congada quando articuladas com os sentidos religiosos do Divino ou de Nossa Senhora do Rosário. (CASCUDO, 1969, p. 532).
Constituem em última instância um “ato de devoção, que representa a alegria e o encontro da felicidade, que se dá através da música, da dança e do canto para prazerosamente proporcionar o caminho do diálogo e da comunhão com o Divino” (ARAUJO apud CHAVES, 2003, p. 35).
Além de sua função religiosa, estas danças cumpriam uma função social e educativa, estreitando os laços de solidariedade, criando uma identidade coletiva e o sentimento de pertença, principalmente nas áreas rurais, relativamente isoladas e organizadas em pequenas comunidades: o bairro.
Em Mogi das Cruzes, a Missão de Pesquisas Folclóricas da então recém-fundada Sociedade de Etnografia e Folclore, coordenada por Mário de Andrade, registra em película cinematográfica, dirigida por Dina Lévy-Strauss, datada de 30 de Maio de 1936, Congos, Congados e Cavalhadas, na área central da cidade.
A documentação sobre a ocorrência destes eventos em áreas rurais durante os anos 30 parece não ter sido levada a efeito por estudiosos e pesquisadores (talvez a única exceção pertence aos Inquéritos Folclóricos encaminhados pela citada Sociedade que apontam a ocorrência destas danças na região de Poá, pertencente ainda ao município de Mogi das Cruzes).
Em Mogi, um destes bairros, situado nos contrafortes da Serra do Itapety (atual Bairro Beija-Flor), parece ter cultivado estas formas de dança ainda na década de 20, conforme depoimento cedido pelo Sr. Joaquim de Souza Mello, nascido e criado nesta região, hoje contando com seus 74 anos, lembra-se da realização das Congadas e Monçabiques:
Seu Joaquim e Viola. Sítio da Goiaba,
Bairro Beija-Flor.

"Em 1929, no Itapety, o Sr. Benedito Pinheiro, proprietário do Sítio Duas Irmãs, era Mestre de Monçambique. Meu Pai dançava Congada, quando ainda eu era solteiro e também participava do Moçambique, que na época, contava entre 12 a 16 componentes."

Congada e Moçambique, que segundo o Sr. Joaquim, são bem diferentes:
"A Congada é diferente do Moçambique, na Congada a pessoa era sorteada, se aproximava do trono e do rei, chamado Belo, e tinha que beijar o pé do Rei. O rei da Congada, o Sr. Avelino, designado como o "Belo Sudário", teve inclusive um filho, batizado como Sudário."
A Congada permaneceu no Itapety por muitos anos, apresentando-se por toda a região:
"O pessoal ia a pé até o Bairro do Maracatu, em Guararema. Um primo do meu pai, muito brincalhão, antes de chegar nas fazendas para as festas, procurava por vestígios de bagaço de limão no rio, o que significava que um leitão fora preparado e assim, o repasto estava garantido. Agora, este bairro do Maracatu, é quase deserto. Antigamente, tinha muito mais gente do que hoje."
"Tinha uma venda, do Camilo, que o pessoal quando ia para a dança, cortava as mantas de carne seca. Pois é um negócio errado isso, mas meu pai contava essas coisas. Puxa, o cara vai fazer uma devoção... não é uma brincadeira... Comprasse né."
"Na Congada tinha o Rei, o Embaixador. Eu sei que era bonito. A Congada era muito bonita. Eu cheguei a dançar com o Dito Pinheiro, várias vezes. Ele dançava nas Igrejinhas, no Santo Alberto, na Moralogia (em uma igrejinha que não existe mais) e na Cruz do Pito."
"Na Cruz do Pito, o Salto, eram outros maestros de Moçambique, outros grupos. O moçambique do Zé Martins, do Dito Mathias. O Salto é o seguinte: Bairro do Itapety do Salto, no ribeirão do Salto. O Zé Rosa era o folgazão e mestre de São Gonçalo, também o Zé Pereira. O Zé Pereira, era casado com a irmã do Dito Pinheiro."
Na Congada, as pessoas se aproximavam do Rei, e declamavam pequenos versos:

Sou um soldadinho destemido,
De calça branca e botina numerada,
Subo morro, desco morro,
Com a mochila na cacunda.

A pinta que o galo tem,
O ovo tem na gema,
Uma é branca outra amarela,
A pinta que o galo tem,
o pinto saiu com ela.

Fontes:

ANDRADE, Mário de. A Entrada dos Palmitos. São Paulo: Revista do Arquivo Municipal XXXII, 1937, p. 51-64.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 2. Vol. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969. p. 532.
CHAVES, Robson Belchior Oliveira. Salesópolis. Festa do Divino: das origens aos dias atuais. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003.

O Diário de Mogi: Grupo estuda a história da Festa do Divino


terça-feira, 7 de junho de 2011

A Festa do Divino: o império da festa

Presença marcante no Brasil, já no período colonial, a religião sempre correspondeu a necessidades, desejos, esperanças e aspirações das pessoas, atuando em diversos sentidos, ora legitimando a dominação dos poderosos, ora conscientizando e libertando.

Neste sentido de libertação, conscientização é que podemos analisar a festa do Divino, comemorada desde os tempos coloniais onde o sagrado comungava com o sentido profano das festas e revestia a seriedade da liturgia com a alegria das manifestações do povo e seu entendimento da religiosidade, a maneira como o povo entendia e praticava seu catolicismo.
Em estreita ligação com a religião as festas imperavam, em um sentido de se estabelecer, de permanecer e o império das festas dominava a todos levando à idéia de lugar de reunião, participação e comunhão. As irmandades incorporavam elementos africanos nas festas, como a Irmandade do Rosario, onde se encontravam escravos, livres e pobres, que introduziam nas festividades as danças de Moçambique, a Congada e na festa mais intensamente comemorada, a Festa do Divino, a historiadora Mary Karrach apontou que os escravos de origem africana identificaram a pomba do Divino com a simbologia de pássaros de regiões africanas que significavam vida e morte ou dia e noite ou ainda liberdade e igualdade.
Por essas razões havia por parte das autoridades tentativas de disciplinar ou intervir nas manifestações populares, o que não se concretizava inteiramente pela ligação da festa com a religião e a intensa participação das pessoas, onde as manifestações de religiosidade aconteciam fora da igreja, ou seja, na festa. O viajante frances Saint-Hilaire, ao passar por Taubaté em 1822 na época da festa de Pentecostes anotou em seu diário “Já estávamos sob o rancho quando um bando de gente, de todas as idades e cores, ali veio aboletar-se conosco.São músicos que vão...coletar para a festa de Pentecostes.Em regra esses que assim pedem para o Espírito Santo não devem sair de seu distrito, mas obtém facilmente a permissão para girar pelas freguesias vizinhas”.
Em várias localidades, inclusive em nossa região as posturas municipais ou leis municipais proibiam festas de santos com a concentração de pessoas e em Mogi das Cruzes um documento de 1835, encontrado no Arquivo da Assembléia Legislativa, nos mostra que as “festividades” eram importantes na vila.
Neste documento a Câmara de Mogi solicitou a Assembléia que não fosse proibido os “tiros de roqueira dentro da vila” em dia de festa. A roqueira era um tubo de metal cheio de pólvora, preso em um toco de madeira e quando aceso provocava uma forte explosão e servia para dar início às festividades, seria um equivalente dos morteiros de papelão usados hoje em dia.
Pelo menos nas quatro principais festas, a saber, “Páscoa, Espírito Santo, Santa Anna e Natal”, era requerido a permissão para o uso da roqueira, no entanto, a proibição vigorou.
Durante a década de 1830 as proibições ficaram mais rígidas como mostra uma postura municipal ( leis municipais) da cidade de São Paulo, onde, “todo aquele que ...tirar esmolas para festejos de Santos fora das portas das igrejas e capelas, e pelas ruas será multado ou dois a seis dias de prisão” e em 1836 na freguesia da Penha em São Paulo uma pessoa foi presa por “esmolar com bandeira”.
Em Santa Isabel, cidade onde as posturas municipais haveriam de proibir as danças como o moçambique, comemorava-se a Festa do Divino de 1844 com a sua Imperatriz solicitando licença para esmolar, segundo documento do Arquivo Histórico do Município de São Paulo, “a fim de solenizar melhor a festa do Divino”.
Estes exemplos nos mostram que aos olhos do poder instituído as festas e danças populares eram acompanhadas e regulamentadas pelas leis porque eram vistas como uma possibilidade de transgressão da ordem, principalmente numa sociedade escravocrata, por outro lado mostrava a autonomia, desejos e vontades do povo.
Sabendo que estas festividades, muitas vezes cerceadas, eram de extrema importância para manter a identidade do povo, o modernista Mario de Andrade realizou excursões às cidades que circundam São Paulo para mapear as festas, danças e costumes das comunidades.
Visitando Mogi das Cruzes em 30 de maio de 1936, escreveu um artigo para a Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, sobre a Entrada dos Palmitos: “Chegado a Mogi pelas doze horas do dia 30, para organizar as filmagens que o Departamento de Cultura realizaria no dia seguinte, cuidei de indagar o que era essa “Entrada dos Palmitos”. Infelizmente perdera a cerimônia que é tradicionalmente às primeiras horas da manhã. Como julgo ver nessa festa uma curiosa e ainda viva reminiscência do culto do vegetal da primavera no Brasil, venho comunicá-la para que os conhecedores mais completos dos costumes nacionais liguem a festa mogiana a outras do país e a estudem”.
Estudar a festa e conhecer seu significado, não deixar a tradição morrer envolvida pela modernidade, este era o projeto de um modernista como Mario de Andrade.A congada e o moçambique que ele filmou pouco se modificou, a cavalhada filmada no Largo do Bom Jesus não mais existe.
A festa chegou até nossos dias muito diferente e muito igual. Igualdade na tradição e fé dos devotos e participantes. Diferente sob o signo dos valores da sociedade contemporânea, do consumo e da mercadoria.
As festividades significam encontros, possibilidades de socialização, liberdade e para todos que vivem o Divino, envolvimento, participação, solidariedade e emoção. Em qualquer época e em qualquer lugar homens e mulheres tornaram e tornam as festas autenticas e concorridas.