segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Caderno de Postagens 2012


A Dialética Cultural tem como objetivo a elaboração de projetos, pesquisas e desenvolvimento interpretativo de documentos históricos, itens da cultura material e fatos históricos em museus, bibliotecas e arquivos históricos. Em seu segundo ano de existência, a Dialética Cultural produziu e manteve publicações acadêmicas (Revista Dialética Cultural N. 2),  elaborou, em parceria com a Diretoria de Ensino da Região Mogi das Cruzes,  suporte para o “Projeto Africanidades”, contando com a adesão voluntária de 15 escolas (aproximadamente 10.000 alunos), realizando palestras  e auxiliando na elaboração de exposições.
A exemplo do ano de 2011, para comemorar mais um ano de atividades, brindamos nosso público com a seleção das postagens mais relevantes deste ano de 2012, somando mais de 130 páginas sobre a documentação da região do Alto Tietê.
Na certeza de que o conjunto destas postagens constitui material de pronto auxílio para pesquisadores e estudantes interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre a região, reiteramos nossos sinceros votos de saúde e prosperidade neste novo ano de 2013.
Para visualizar o Caderno de Postagens 2012 click na imagens e a seguir, na aba publicações.

Com os cumprimentos de
Antonio Sérgio Azevedo Damy e Angelo Eduardo Nascimento Nanni, da Dialética Cultural Ltda.

sábado, 29 de dezembro de 2012

29 de dezembro de 1957: Mogi das Cruzes e a política indígena


Recentemente a televisão resgatou a trajetória dos irmãos Villas Boas, defensores intransigentes da cultura indígena e intelectualmente os criadores, junto a outras personalidades do cenário politico, cultural e cientifico, como Darcy Ribeiro, da reserva indígena “Parque Nacional do Xingu”, em 1961.
Essa vitória em 1961, era o desfecho da luta iniciada décadas antes pela preservação dos habitantes naturais do Brasil e que trouxe Orlando Villas Boas à cidade de Mogi das Cruzes, nos dias 28-29 de dezembro de 1957, anunciado-se no jornal da cidade, a concorrida palestra.
Dando sequencia a ações que visavam trazer ao grande público o conhecimento em torno das etnias indígenas e a criação de reservas que os possibilitassem viver, era o que trazia Orlando Villas Boas à cidade, acompanhado do deputado socialista Germinal Feijó, amigo de Mário de Andrade e de Antônio Cândido, que o considerava uma pessoa extremamente combativa.
Para entender a presença de Villas Boas na cidade, voltemos para meados do século passado, mais precisamente nas décadas de 40 e 50, quando parte da etnologia brasileira acreditava que os indígenas e sua cultura estavam destinados à extinção.
Contrario a esta crença, o Serviço de Proteção aos Índios divulgava, a partir de 1942, as suas ações de preservação e instalava uma seção de estudos para pesquisar as sociedades indígenas, sendo que Darcy Ribeiro ampliou essas ações de conhecimento das sociedades indígenas ao inaugurar em 1953 o Museu do Índio no Rio de Janeiro.
Nas ações de campo os irmãos Villas Boas estavam presentes no Alto Xingu desde 1943 com a expedição Roncador-Xingu.É de Orlando Villas Boas as palavras a seguir:Em 1940, as frentes de seringueiros [extratores da seiva dos seringais,], no rio Xingu, no rio Iriri, no rio Iriri alto e no rio Iriri baixo, costumavam entrar nas aldeias indígenas e davam arsênico com farinha para fazer o índio desocupar a área. Nós vimos, assistimos, até muito pouco tempo [atrás], na década da 60, seringueiros de Mato Grosso metralhando índios nas aldeias de [índios] Cinta-larga em Aripuanã [município do estado de Mato Grosso, localizado na Amazônia]. Nós assistimos e foi feito um processo que foi encaminhado até o Serviço Nacional de Segurança, de pioneiros a mandado de seringalistas [seringueiros, donos de seringais], que pegavam índias, abriam, amarravam as pernas e cortavam de facão.
Dos irmãos Villas Boas, Darcy Ribeiro escreveu que “Tinham uma consciência aguda de que, se os fazendeiros penetrassem naquele imenso território, isolando os grupos indígenas uns dos outros, acabariam com eles em pouco tempo. Não só matando, mas liquidando as suas condições ecológicas de sobrevivência.”
Segundo o próprio Orlando, três lemas pautaram sua ação e de seus irmãos: 1) não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje, 2) o índio só sobrevive dentro de sua própria cultura, 3) já que o civilizado não pode levar nada de bom ao índio, pelo menos respeitemos sua família.
Hoje, perto de Mogi, em Bertioga, assistimos a situação dos índios Guarani do Rio Silveiras, tentando sobreviver, em meio ao contato com uma civilização que mais tira do que lhes dá.


Fontes
Arquivo O Diário de Mogi, dezembro de 1957 - fevereiro de 1958. 


RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 194
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/politica-indigena
PONTES, Heloisa. Entrevista com Antonio Candido. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 16, n. 47, Oct.2001. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092001000300001 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Caminhos Antigos XX



Gente da terra, estrangeiros e os caminhos de ferro.A ferrovia na região Sabaúna-Guararema
Pelos caminhos antigos que ligavam a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro transitaram tropeiros transportando variada mercadoria no lombo de tropas em animais de carga. Em determinados trechos navegáveis, o rio Paraíba também era utilizado, como da Freguesia da Escada até Cachoeira Paulista, como registraram os viajantes do início do século XIX.
Com o desenvolvimento da economia cafeeira no vale do Paraíba, o trabalho do tropeiro e de auxiliares na tropa era procurado em todas as regiões cortadas pela Estrada Geral sendo que o serviço infantil de crianças de dez, doze ou quatorze anos era utilizado como demostra o seguinte contrato de trabalho de 1864: eu, José Maria de Santa Anna contratei com o senhor Alferes... dar-lhe o meu filho legitimo de nome Antônio de Santa Anna de idade de quatorze anos mais ou menos para lhe prestar o serviço de cozinheiro da tropa, sendo para Jacarey e sendo daqui para Santos.”As relações de servidão estendiam-se à infância que não era reconhecida como um tempo de vida, servindo o menor de acompanhante ou trabalhando na tropa de transporte de café.Ao mesmo tempo, a construção dos caminhos de ferro, avançavam pelo século XIX, onde a rapidez e eficiencia do trem contrastava com as tropas e decretava a substituição lenta do tropeiro.
Contemporâneo a este contrato de trabalho na tropa e as atividades do tropeiro no transporte do café, houve a tentativa de construção de uma linha férrea para escoar a produção do Vale do Paraíba para o porto de Santos, via Freguesia da Escada, em 1863.Ao mesmo tempo que a ferrovia Santos-Jundiaí era construída, o engenheiro  inglês Daniel Makinson Fox responsável por aquela construção, procedeu aos estudos de uma via férrea entre a estação do Rio Grande, no alto da serra do Cubatão, e a Freguesia da Escada, daí em diante numa utilização mista, a navegação do Paraíba em conjunto com a ferrovia.
A concessão foi atribuída ao Barão de Mauá que não conseguiu organizar companhia para a construção. Mais tarde, em 1865, o projeto é estendido até Jacareí e a concessão para exploração, atribuída a Gomes Leitão, barão do café e um dos maiores escravocratas e traficante de escravos da província, porém a parte da navegação fluvial, não inspirando confiança para o transporte de café, impediu novamente a criação de uma companhia.
Em 1871, lei provincial decretou a construção de uma linha de São Paulo a encontrar os trilhos da estrada de Ferro D. Pedro II, começando as obras em 1873 e no mesmo ano se trabalhava simultaneamente de São Paulo a Guaratinguetá.
locomotiva Baldwin similar a utilizada na região
A obra foi dividida em três seções: a primeira, de São Paulo à Jacareí, uma intermediária, de  Jacareí a Caçapava  e finalmente, de Caçapava à Cachoeira.  A primeira seção era a que compreendia maiores dificuldades e trabalhos, com pontilhões e pontes construídos sobre tijolos e pedras de cantaria, o que exigia o trabalho especializado do canteiro, com trabalhadores hábeis no corte de pedra, responsáveis também pelo trabalho no túnel dos Piroleiros, aberto em rocha com 240 metros de extensão. Nesta primeira seção da estrada, o rio Guararema, considerado “água dormente” (por adquirir grandes proporções no períodos de cheia), foi atravessado 31 vezes e retificado 25.
carro de passageiro corte interno
Aberto ao tráfego em 1875, nos quilômetros iniciais, até Jacareí, era utilizado para tração a locomotiva Baldwin e carro de passageiros Jackson Sharp.





caro de passageiro para bitola estreita









O trafego na estrada de ferro foi inaugurado em 1875-1876, mas desde 1874 temos moradores de vilas e freguesias trabalhando na estrada de ferro, para terceiros que empreitavam trechos ou secções da ferrovia em construção, assim como novos personagens que chegam à região. Os imigrantes, italianos, portugueses, etc, recém-chegados,  começavam a aparecer  nos registros, como Joseph Feudg, natural da Grã-Bretanha que se obrigava “a prestar qualquer serviço braçal.”
Destacamos como exemplo para tipificar estas novas relações que se estabeleciam, as ocorrências ligadas a dois empreiteiros, João Weber e João Gonçalves Leite em 1876. Neste ano é realizado um auto de corpo de delito em Artur Bartleth ferido mortalmente por arma de fogo próximo à Freguesia da Escada ”na empreitada de João Weber no lugar denominado cabeceira do Guararema.”
No ano anterior (1875) um auto de exame cadavérico feito no alemão Jacob Mantel, feitor de João Weber atribuiu a morte a suicídio tendo como testemunha Pasquale Brocchini “natural da Toscana, Reino da Itália e morador do bairro do Biritiba.”
João Gonçalves Leite, por sua vez, era outro empreiteiro que atuava nesta primeira seção da construção da estrada de ferro São Paulo-Rio de Janeiro, realizando contratos de “serviços na estrada de ferro” e de “rancheiro na estrada de ferro”, ou seja, fornecia “o rancho”, a alimentação nos acampamentos de trabalho, inclusive na empreitada de João Weber com quem estabeleceu contrato.
Com a construção da ferrovia as relações sociais tornavam-se mais complexas, alterando o convívio de pessoas cujos sentimentos e valores vão se transformando gerando diferentes situações que espelham as novas relações de trabalho.

Trajeto da ferrovia e locais de conflito
 
O trajeto da ferrovia passava pela cidade de Mogi das Cruzes em 1875 e seguia para Jacareí em meio a conflitos como os abaixo indicados, ocorrido a meio caminho entre a fazenda Sabaúna, Freguesia da Escada e um pequeno núcleo de habitação denominado São Benedito, perto dos acampamentos de trabalhadores, em junho daquele mesmo ano:
"deu-se um conflito entre alguns estrangeiros da estrada de ferro na empreitada do  Moreira, a quem do Rio Paraíba, com a família de Domingos Pinto, de que resultou ferimentos no mesmo e fractura de um braço da sua mulher e ferimento em seu genro...”

em azul:provavel local dos conflitos.amarelo:empreitada
 
O relato dos acontecimentos que a seguir indicamos nos mostram as mudanças nas relações sociais decorrente da chegada dos imigrantes ou dos "estrangeiros" e como a população local sente desrespeitadas as tradições e cultos locais. Veremos como imigrantes, no caso, portugueses, trabalhadores da ferrovia agridem com gozações, valores e tradições que são preservados pelos moradores da região e como estes reagem resultando em ocorrências policiais. Longe de serem casos triviais estes eventos evidenciam as relações cotidianas e suas alterações.
O inspetor de quarteirão que relatava os fatos, explicava que a família de Domingos Pinto possuía “casa de negócios na linha férrea”.
Instaurou-se inquérito policial por atos de desrespeito à família, com a realização de exame de corpo de delito nas vitimas, tendo sido ouvidas três testemunhas.
A primeira, Bernardino, negociante, morador na Freguesia da Escada disse ser primo irmão da ofendida “estava ele depoente assistindo a festa de São Benedito no bairro da Paraíba e observou um grupo de portugueses trabalhadores no serviço da estrada de ferro do Norte a cargo do Moreira e estes portando-se de modo inconveniente e gracejando com famílias e com o santo de devoção, ele depoente já previa algum acontecimento como de fato posteriormente se deu...”
A família fora atacada por homens que exerciam o oficio de “canteiro” e o depoente dizia saber que os agressores ”foram despedidos do serviço do Moreira, por este subempreiteiro, e viu ele depoente, os mesmo na cidade de Jacareí, onde se acham trabalhando nas obras do cemitério.”
Havia mais duas testemunhas no inquérito: a primeira, um professor público de primeiras letras na freguesia da Nossa Senhora da Escada e a segunda um morador de um bairro rural denominado Itapetí. Ora, qual a razão da agressão?Uma brincadeira com o culto de São Benedito.
Na região havia uma capela voltada para o culto de São Benedito que segundo tradição oral da região teria sido erguida com dinheiro de uma ex-escrava e de habitantes locais perto do rio Guararema. Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro define São Benedito como patrono dos africanos que ” em seu louvor celebravam festas religiosas, em que se exibiam diversões profanas ' e citando a cidade de Cunha, no Vale do Paraíba, São Paulo, diz que 'persiste a crença de o santo ter inventado a dança Moçambique tão popular na região'e que ' São Benedito era trabalhador na roça e para descanso, ele inventou a dança de moçambique”.
A chegada do trem alterou o ritmo de uma sociedade, trazendo a possibilidade de levar o que era produzido na terra e abastecer os centros urbanos distantes com produtos agrícolas.  
O caminho inverso também se tornou realidade, ou seja, da cidade para o campo, onde eram anunciadas viagens nos jornais em direção ao “campo”, os “pic-nics” em moda na Europa. A “Escola Alemã” promoveu um “passeio campestre”, por via férrea, para Guararema em 1884 e Jacareí em 1885, sendo que o local do pic-nic se localizava junto às margens do rio Paraíba.

O tunel dos Piroleiros
tunel dos piroleiros
Hoje conhecido como túnel das piluleiras, no século XIX foi grafado como tunel dos piroleiros, palavra portuguesa (hoje fora de uso e não dicionarizada), usada por exemplo nas atas da Câmara Municipal de São Paulo para designar pessoas ligadas ao comércio de vinho no século XVI, e atualmente em Portugal (com poucas ocorrências), para se referir a brincadeira, avacalhado, etc (por exemplo, na juventude ‘Santo Antonio era um santo piroleiro’). Igualmente notável é a origem espanhola do termo apontado pelos historiadores Luis Felipe de Alencastro e Carlos Lessa, que atribuem à palavra peruleiro (séculos XVI e XVII), a prática de comérco entre portugueses e espanhóis,  entre Brasil e baixo Peru.
tunel dos piroleiros
Com o início do transporte ferroviário a construção de túneis se tornou importante como solução de engenharia para transpor obstáculos.
Neste tipo de construção Portugal teve concluído o túnel Chão de Maças em 1862 com 650 metros de extensão, e mais tarde (1889) o túnel do Rossio com 2613 metros atravessando a cidade de Lisboa
É perfeitamente justificável que trabalhadores portugueses fossem designados para seções da obra que apresentassem a dificuldade na abertura de tuneis.

Piroleiros, palavra portuguesa ou dialeto da galia segundo alguns dicionarios, mostra a presença de trabalhadores imigrantes na região que deixaram sua marca na denominação do tunel. 
tunel dos piroleiros desativado ao lado do traçado utilizado hoje
Para saber mais
Alencastro, L.F. (2000). O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, pg. 110.
ARQUIVO HISTÓRICO DE MOGI DAS CRUZES. Inquéritos policiais, autos criminais, 1875.
NANNI, Angelo E. Nascimento Nanni. Entre o sonho e a realidade: a constituição do núcleo colonial de Sabaúna. Mogi das Cruzes, SP: Dialética Cultural Editora, 2012.
LESSA, Carlos. O Rio de todos os brasis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, pg. 32-34.

Fonte das imagens
Railroad Museum of Pennsylvania, 
O novo mundo, http://memoria.bn.br/DocReader/DocReade, 
http://www.estacoesferroviarias.com.br/sp-obrasdearte/tunelpiruleiros.htm
mapa http://bndigital.bn.br/