quarta-feira, 30 de abril de 2014

Caminhos Antigos XXVIII


Operários:manufatura de chapéus

Operários, Livre Pensamento e Anticlericalismo

Naquele tempo, muitos ficarão escandalizados... (1)


Na virada do século XIX para o XX, data marcante no calendário, a população da cidade esperava os novos tempos e colocava no alto da serra do Itapeti, a cruz do século, marco da passagem centenária.

Esse momento marcava também a chegada de novos atores sociais na cidade, num espaço que era marcado, até então, pelo domínio do catolicismo, mas, desde as décadas finais do século XIX era partilhado também por pessoas ligadas a outras maneiras de ver, pensar e explicar o mundo, como por exemplo, os livres pensadores e o anticlericalismo.

Com o avanço da sociedade industrial no século XIX, do racionalismo, do pensamento científico e de novas formas de pensar o poder, se desenvolvem estas duas novas mentalidades que abrigarão na cidade de Mogi, principalmente maçons e espíritas.

Desde 1904 havia a manifestação de livre pensadores que escreviam artigos que circulavam em jornais de Mogi, como o Ypiranga, e eram reproduzidos no jornal da capital, “O Livre Pensador”: “Quem vai dizer ao povo de Mogi o que sente, o faz com verdadeiro desprendimento de seita, de agremiação religiosa, pois que aceita aquilo que a positividade da ciência pode atingir...a ação da matéria organizada.”

Outro periódico, o jornal "A Vida" começava a circular em 1906 e neste mesmo ano recebia extensa carta parabenizando o pároco local, Padre Landell de Moura, dizendo:"se todos aqueles que se dizem ministros de Cristo procedessem como sua reverendíssima, talvez hoje o cristianismo fosse uma religião aceita por todos os livres-pensadores do planeta....".

No mês seguinte uma carta anônima é publicada no mesmo jornal e dizia:"Oxala que em Mogi das Cruzes se eternize o atual vigário...tornando-se a Igreja a casa da confraternização do trabalho, e da igualdade social.Este deverá ser o desejo de todo homem justiceiro e imparcial".

Possivelmente Padre Landell era bem visto pelos espíritas, maçons e livre pensadores da cidade por ser "um padre de ciência", que dizia: "Quero mostrar ao mundo que a Igreja Católica não é inimiga da ciência e do progresso humano".Landell fora o inventor do rádio, tendo várias patentes registradas nos EUA.

Em Mogi das Cruzes, o padre-cientista, foi substituído no início de 1907, após realizar um exorcismo (possivelmente monitorado por aparelhos de sua invenção) e escandalizar a cidade conservadora.

É neste ambiente que chega à cidade em 1911, Belén de Sarraga, feminista, leitora de autores anarquistas, livre pensadora e militante anticlerical.Defendia a liberdade de consciência, a liberdade de instrução, a tolerância e os objetivos pacifistas.

Percorreu a América, do México à Argentina, passando pelo Brasil, promovendo concorridas palestras onde o tema era a mulher, família, Estado e religião.

Em Mogi das Cruzes algumas pessoas se agitavam e formaram uma comissão para trazer Belén de Sárraga à cidade, uns movidos pelo anticlericalismo das idéias de Sárraga, outros pelo humanitarismo e ainda outros pelas posições políticas sobre o poder (poder dos homens sobre as mulheres, poder de Estado, etc), pois, havia um alto índice de imigrantes espanhóis e italianos que compartilhavam destas posições.

A cidade se preparava para receber o “Anjo da Revolução” e o vigário da Matriz dizia: “Chegou nesta cidade a exploradora espanhola Bélen Sárraga, espanhola expulsa de sua pátria por causa das ideias subversivas que pregava. Os católicos desta cidade não tomaram parte nas festas dessa espanhola. As senhoras (mais de mil) protestaram contra a vinda dessa anticlerical.”

No dia 22 de junho de 1911, uma quinta-feira, Bélen de Sárraga chegava por trem de subúrbio e era conduzida ao Teatro da cidade para falar sobre um tema que envolvia formas de poder:”A família e a Igreja”.No dia seguinte, seu destino era novamente a capital e outras peregrinações em torno da liberdade e das vontades do ser.

A recepção à Belén de Sárraga foi marcada pela participação direta de membros do Centro Espírita Antônio de Pádua, fundado no dia 13 de junho de 1911 (dias antes da visita de Sarraga) e da Loja Maçônica União e Caridade, fundada um ano depois em 3 de Agosto de 1912.

É neste fervilhar de ideias que une tanta diversidade (maçons, espíritas, anarquismo, socialismo, etc.), que em 30 de novembro de 1912 mais um componente é adicionado numa “história das sensibilidades”:o nascente operariado da cidade.

Na fábrica de chapéus Villela, que funcionava em Mogi desde alguns anos, uma jovem operária de nome Maria Cabrera, possivelmente espanhola, falecera, levando o operariado a promover uma coleta de dinheiro para realizar seus serviços funerários.

Operários e populares compareceram em massa para acompanhar a “encomendação” que seria realizada na Igreja Matriz “em obediência a um velho costume da cidade”, segundo um correspondente do jornal anticlerical “A Lanterna”, que completava: o funeral, “teve uma imponência pouco comum em Mogi das Cruzes.”

Como a Matriz se encontrava com as portas fechadas, providenciaram as chaves e o sacristão começou a badalar os sinos com toques de finados.

Neste meio tempo, depois de ter jantado, o padre Benedito Marques de Freitas, alegou já ter passado da hora, negou-se a encomendar o corpo, entrou na igreja vociferando contra o sacristão e ordenando que parasse os toques de sino.

Em seguida se dirigiu as pessoas presentes na igreja (muitos acompanhavam de fora tal a lotação) e disse: ”Esta casa é minha, ponham-se lá fora e levai esse cadaver para a polícia”, outros afirmavam que as palavras do padre foram “retirem isto daqui!Não encomendo esta porqueira.Quem manda aqui sou eu.”

O fato objetivo foi que operários e populares caíram sobre o padre com socos e outras agressões, provocando a fuga para uma casa próxima da igreja, de um chefe político local, e posteriormente nova fuga para São Paulo, para não mais retornar a cidade.

Depois desse desfecho na igreja, o cortejo seguiu para o cemitério, onde um advogado de nome Artur Aguiar falou no enterro da operária, provavelmente um discurso inflamado e com conteúdo anticlerical.

Na volta do cemitério para a cidade, o povo realizou nova manifestação contra o padre e é o advogado Aguiar que foi o protagonista dos novos desdobramentos do caso.

Agredido por um "partidário do padre" numa confeitaria da cidade o advogado Aguiar relatava que o agressor ameaçara a loja maçônica União e Caridade caso fosse condenado, e completava:"Não há em Mogi quem ignore que o verdadeiro motivo desta agressão foi o ser eu maçom e livre pensador...".

A polícia abriu inquérito sem conseguir apurar nada, porem o poder local, que fora contestado, atribuía a “revolucionários há pouco tempo empregados na fábrica de chapéus”, o espancamento do padre.
operários chapeleiros em São Paulo

Em 29 de dezembro, um mês depois de iniciado o caso envolvendo igreja, operários, anticlericais e livres pensadores, uma comissão dos operários chapeleiros de São Paulo se reuniram às sete horas da manhã no Largo da Sé para seguir à estação do Braz e vir até Mogi das Cruzes realizarem uma passeata ao cemitério e demonstrar seu apoio aos operários de Mogi.

A solidariedade operária caminhava para as greves gerais de 1917, 1919, na cidade de São Paulo.



Os pseudônimos

O livre pensador que publica artigo no jornal O Ypiranga e que é republicado no Livre Pensador em 1904, assina Gregório VII.O papa Gregório VII foi o responsável por desencadear  uma série de práticas reformadoras na Igreja nos séculos XI e XII.

Um dos correspondentes em Mogi do jornal anticlerical A Lanterna, que cobre intensamente o caso da fuga do padre Freitas, assina “ex-seminarista”.Provavelmente é o mesmo ex-religioso que fazia parte da comissão que trouxe a anarquista e anticlerical Belen de Sárraga para palestra no teatro.
jornal A Lanterna:anticlerical e de combate

Protestantes: Neste período de novas ações, costumes e pensamentos na cidade, devemos acrescentar que a primeira Igreja Batista de Mogi das Cruzes foi fundada em 12 de junho de 1911, quando contava com 34 membros batizados nos anos anteriores.Foi organizada por um ferreiro e teve como primeiro pastor o norte-americano J.J. Taylor.Por ser organizada por um ferreiro nota-se a proximidade com setores que ficavam fora do centro onde gravitava a Igreja Católica.


Livre pensadores
: aquele que, em matéria religiosa, pensa sem subordinação a dogmas.


Nota 1: Mateus 24:10


Para saber mais

SILVA, Eliane Moura. MAÇONARIA, ANTICLERICALISMO E LIVRE PENSAMENTO NO BRASIL (1901-1909). XIX Simpósio Nacional de História da ANPUH, Dep. de História / IFCH / UNICAMP


Fontes:
Livro do Tombo da Cúria Diocesana de Mogi das Cruzes
Jornais: A Vida 25/06/1911, O Livre Pensador 24/04/ 1904, A Lanterna, dezembro de 1912