segunda-feira, 25 de julho de 2011

Um crime na Freguesia da Escada em 1854

O trabalho do Historiador por vezes incorpora a analise de documentos de ordem jurídica para revelar aspectos do cotidiano e da vida em períodos diversos da História. Através da analise desta documentação denominada geralmente de Autos Crimes, podemos conhecer costumes, padrões de comportamento, religiosidade, captar a intensidade dos relacionamentos, dos indivíduos e suas vontades, necessidades, dos atos e seus desdobramentos, do cotidiano, enfim do que chamam rotina e outras características culturais de uma dada sociedade que nos é revelada com a utilização destas fontes.
Autos Crimes é o nome genérico dado aos documentos cartoriais e judiciais composta, de processos criminais, auto de corpo de delito, execuções de sentença, apelações, e termos de bem viver. Esses processos passavam por diversas instâncias, tais como o juízo municipal, o juízo de direito, juiz de paz, a polícia e as delegacias.
Em postagens anteriores já utilizamos esse tipo de documentação para falar sobre costumes na primeira metade do século XIX, onde, as simples ações cotidianas das pessoas incomodavam as autoridades constituídas e muitas vezes eram tidas como ameaça a ordem.
Continuando com essa documentação vamos explorar um pouco as possibilidades de um Auto de Corpo de Delito.
Por volta do dia 10 de dezembro de 1854 o inspetor de quarteirão da Freguesia da Escada conversava com duas pessoas perto das dezoito horas, quando, na frente da casa vizinha de onde estava e conversava com lavradores do local ouviu-se uma discussão:
-- Isto é muito desaforo!Não há quem agüente!Saia agora! Dizia o freguês para o vendedor de carne.
Viu-se então o carniceiro com uma foice na mão, falar: -- Eu dou neste sujeito!
-- Não dê! Replicou um dos homens que conversava perto do local e que neste momento acudia o conflito.
O freguês, Albino Vieira levantando o porrete que havia conseguido, acerta o maxilar de Antonio Joaquim da Silva ensangüentando-o e pondo-o fora de combate.
O inspetor de quarteirão prende Albino Vieira em meio ao ajuntamento de pessoas que corriam para o local e o solta no dia seguinte.
Os acontecimentos descritos fazem parte de um auto de corpo de delito[1] que Antonio Joaquim da Silva pede ao subdelegado para realizar, instaurando processo onde são ouvidas quatro testemunhas:
“Diz Antonio Joaquim da Silva morador na capella de Nossa Senhora da Escada d’este município que no dia 10 do corrente às ave - maria, estando mança e pacificamente em sua casa, havendo nesse dia cortado uma rez, cuja carne durante o dia vendeo aos seus fregueses, ocorre porem que naquele dia e horas mencionadas veio a casa do suppe Albino Vieira se o mmo suppe lhe dava alguma carne fiada, ao que o suppe lhe respondeo que lhe não podia vender fiado, por isso que o suppdo lhe devia há já perto d’um ano ...pelo que resolvera não lhe fiar mais coisa alguma...”[2]
Continuava a exposição do conflito e o subdelegado ouviu as testemunhas que eram todos moradores da Freguesia da Escada, alguns lavradores e um negociante. Todas diziam ter “mais ou menos” tantos anos. Este é um padrão que se repete, e segundo Norbert Elias ”...Torna-se explicável que, nas sociedades sem calendário e nas quais não existem, portanto, representações simbólicas exatas da sucessão dos anos, os homens não saibam ao certo sua idade”[3]
Podemos ver nas fontes primarias, ou seja, nas reclamações que dão origem aos termos jurídicos a existência do calendário, que marca o inicio e o andamento do processo judicial, no entanto, este permanece de uso das instancias jurídicas.
O saber partilhado entre o grupo social não inclui o uso do calendário, mas isto não significa que não existam “representações simbólicas” ou “ símbolos sociais” que possibilitem marcar a sucessão dos anos. Elas existem e são de caráter religioso, como as festas de santo, “horas de ave - maria” ou seja o tempo marcado pela presença da Igreja em uma região em que mesmo os nomes de orientação da moradia exibem esse caráter sagrado, pois lemos nas fontes, “ moro na capella da Escada, moro na Freguesia de Nossa Senhora da Escada”
A orientação pela “hora da ave - maria” mostrava as convenções de uma sociedade pré-industrial, onde na definição dada por Norbert Elias “...o tempo não se reduz a uma “idéia” que surja do nada, por assim dizer, na cabeça dos indivíduos. Ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estagio de desenvolvimento atingido pelas sociedades(...) A imagem e a representação do tempo num dado individuo dependem, pois, do disponível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo...”[4].
Em outra oportunidade outro Auto de Corpo de Delito revelou brigas com sérias conseqüências, entre moradores das cercanias de Mogi das Cruzes que se dirigiam para uma festa religiosa e um grupo de operários imigrantes que trabalhavam na construção da ferrovia e em determinado momento os imigrantes “mangaram do santo” no dizer das testemunhas. Estas disputas revelavam repertórios culturais distintos.
OBS: Em 26 de junho de 1855 foi lavrado um termo de desistência da acusação crime contra Albino Vieira devido falecimento de Antonio Joaquim da Silva, possivelmente em conseqüência dos ferimentos.
As letras em itálico respeitam a grafia original do documento

[1] -Acervo do Forum, Auto de corpo de delito, Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes
[2] -idem
[3] -Elias, Norbert, Sobre o tempo, Jorge Zahar editor, RJ, 1998, p.11
[4]- idem, p.15