quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Caminhos Antigos XVI

detalhe do forro, anjos e detalhe das colunas do altar mor
Taiaçupeba das artes
Um homem pintou o teto de capelas da região com singular simplicidade e beleza, tinha por apelido, talvez por ficar amarrado pintando ou deitado num andaime, Zé Correia. Outro que esculpia, passava dias de descanso na região e ainda o estrangeiro que buscou a tranquilidade e inspiração do local, deixando suas impressões marcadas na paisagem da região ao fazer de sua morada o reflexo de sua alma impressionista-expressionista.
Os caminhos de 3 artistas se encontram, em momentos diferentes da história, mas reunidos num mesmo local:Taiaçupeba. Ao chegar, o ambiente tranquilo do distrito, a rua ladeada por pequenas casas, pessoas no ponto de ônibus, alguns pedestres circulam nas proximidades e na praça onde o edifício da igreja se destaca dos demais, repousa um tesouro no interior do templo, materializados na talha, pintura do altar e forro, exemplo da arte sacra popular de um artesão do povo que se dedicou na vida a criar verdadeiras obras de arte, a partir de suas vivências e de sua crença. Anonimo como muitos artistas populares, representa nosso acervo cultural, nosso patrimônio histórico, conhecido por poucos e que mostra em termos de arte sacra, que nossos olhos não devem estar voltados somente as maravilhas da arte barroca em Minas Gerais ou Nordeste, mas também para capelas simples de pequenas localidades do interior, onde se encontram o trabalho do artesão anonimo que aprendia e tinha como escola artística a interpretação pessoal dos santinhos de papel distribuídos no culto ou nas festas devocionais, as paginas de uma bíblia dominical e os catecismos.
Nossa história tem início quando os caminhos nos levam à capela da Santa Cruz e ao Livro de Recibos de 1885 (pesquisados por Eduardo Etzel) que nos mostram como a pequena capela de 1864 vai ganhando contornos maiores, com os serviços de taipa no corredor da igreja, as madeiras aprumadas que davam formas ao coro em 1889 - ano da Proclamação da República. No ano seguinte (1890), o assoalho ficava pronto e três anos mais tarde (1893), era finalizado o forro do templo.
Forro da capela: original de JBC
José Benedicto da Cruz ou simplesmente JBC, o homem que tinha a religiosidade marcada no nome de José, nome bíblico que significa “aquele que acrescenta”, Benedicto ou abençoado, foi pedreiro, taipeiro, trabalhava como marceneiro, entalhava oratórios e altares, pintava e decorava igrejas na região de Mogi das Cruzes e foi o grande responsável por deixar a igreja de Taiaçupeba da maneira que hoje a encontramos.
Os trabalhos na estrutura da igreja se estenderam até 1917 quando JBC finalizou o forro da capela como mostram os recibos e a assinatura que deixou no local com data e ano da conclusão da obra em 1918.
No forro da capela, a religiosidade de JBC dá lugar a uma reinterpretação e releitura própria de uma obra do barroco do final do século XVII, uma Nossa Senhora da Conceição, rodeada de anjos, redistribuídos entre as nuvens, segundo sua concepção.
Ao fundo da igreja, o altar mor guardava uma solução interessante: dois anjos pintados acima do altar, um de cada lado, olham com as mãos em prece para o centro do altar.

anjos enquadrados por elementos arquitetonicos do altar: original de JBC

Contemporânea à presença de JBC em Mogi das Cruzes, pintando capelas e igrejas, a semana de Arte Moderna acontece em São Paulo em 1922,  buscando a expressão de uma manifestação artística genuinamente nacional.
Graça, escultura em bronze
Entre seus participantes estava Victor Brecheret que viria a se casar com Jurandy Helena em 1939, ou simplesmente Dona Juranda, moradora da vila Taiaçupeba, agora mais movimentada em meados do século XX, por conta dos trabalhadores da “Adutora do Rio Claro”, sistema de abastecimento de água para a cidade de São Paulo, em construção naquele momento.
Brecheret, diferentemente de JBC, representou uma outra vertente da arte, sistematizada e erudita. Introdutor do modernismo na escultura brasileira, estudou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e na Europa. Até o ano de 1955, ano de sua morte, dividiu sua carreira entre o Brasil e a Europa, com exposições em salões internacionais, Bienais como a de São Paulo e de Veneza em 1950 e 1952 e algumas estadas em Taiaçupeba.
Por volta desta época a região recebe O maior pintor chines dos últimos quinhentos anos:  título de um dos filmes recém produzidos que procuram retratar a história de vida deste senhor que por cerca de 17 anos estabeleceu morada em Taiaçupeba. Ano passado, a conhecida loja londrina, a Sotheby´s, vendeu uma coleção com 25 pinturas suas por U$ 87,3 milhões ou aproximadamente 178 milhões de Reais!
Chang Dai-Chien ou Zhang Daqian nasceu em Neikiang, província de Szechuan em 19 de Maio de 1899, filho de um rico comerciante. Em 1917, conduzido por seu irmão Zhang Shanzi (um artista bastante conhecido por suas pinturas retratando tigres) iniciou seus estudos artísticos em Kioto, Japão. Ao 20 anos, instalou-se em Shangai, estudando a arte chinesa com os mestres Tseng Nung-jan e Li Mei-an. A partir de 1927 realizou uma série de viagens pelo interior da China, para melhor conhecer sua natureza e cultura.
Nos anos 40, lidera um grupo de artistas para estudar as gravuras rupestres e murais do imaginário budista nas cavernas de Mogao e Yulin na China (as "Cavernas dos Mil Budas"). Desta experiência, o grupo realiza mais de 200 pinturas.
Por discordar da revolução chinesa, iniciou uma série de perigrinações, vivendo em Formosa, Hong Kong, Índia, Estados Unidos e Argentina.
"Em 1953, ao regressar dos Estados Unidos rumo à Argentina, numa escala no porto de Santos, soube por um amigo da existência de uma região de bom clima, onde era possível comprar terras por um preço conveniente."   Mudou-se então para a cidade de Mogi das Cruzes e dois anos depois comprou um sítio de seis alqueires na região de Taiaçupeba. "Ali construiu seu paraíso, criando várias obras e dedicando-se ao ensino da pintura para uns poucos discípulos.". O professor Sun Chia Chin, fundador da cátedra de Chines na Universidade de São Paulo, foi um deles.
Descontente com o projeto de construção da represa de Taiaçupeba, que inundaria parte de seu sítio e destruiria sua espetacular casa cenário,  Chang Dai-Chien mudou-se para Pebble Beach, na Califórnia, em 1970.
Em 1976, convidado pelo governo de Formosa, estabelece nova residência em Taipei, onde faleceu em abril de 1983.
O jornal O Estado de São Paulo, em sua edição de 1 de junho de 1969 traz uma pequena matéria sobre o artista, destacando-se o depoimento de seu médico pessoal, o Dr. Nobolo Mori: "O professor quase não vê e, outro dia, quando lhe perguntei como consegue pintar sem visão, ele me respondeu que tinha sua pintura na alma..."
Sua antiga residência em Carmel, na Califórnia foi transformada em fundação cultural e museu. Em Taipei, criou-se um museu, especialmente para acomodar parte de sua produção artística, o  Memorial Museum of Zhang Daqian. O mesmo em Neijiang, na China, o Zhang Da Qian Museum. Sua obra pode ser encontrada nos principais museus do mundo ocidental, como o Jeu de Paume em Paris,  o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque e o Museu de Arte de São Paulo, Já em Taiaçupeba, apenas os moradores mais antigos lembram-se do antigo professor, como ainda é referenciado e de sua residência, por ele nominada como o Jardim das Oito Virtudes.



Para saber mais
Eduardo Etzel foi médico, cirurgião toraxico, psicanalista e profundo conhecedor da arte sacra popular tendo dedicado grande parte da sua vida ao trabalho de pesquisa de campo, coletando e registrando material de pesquisa como imagens sacras, oratórios, altares de culto domestico, locais de construção de santas cruzes, capelas, igrejas e entrevistas com moradores de locais pesquisados.
A região de pesquisa fundamental para Etzel, se estende de São Paulo em direção ao Alto Tiete, Vale do Paraíba e litoral.
Diferente das regiões mais ricas como Minas Gerais e Nordeste, a arte sacra encontrada por Etzel nos locais de pesquisa, mostrou sua origem ligada ao artesão caboclo, morador das pequenas localidades.
ETZEL, Eduardo. J.B.C. - Um singular artista sacro popular, a obra transcende o homem.S.P.: Cesp, 1978

Restauro da igreja de Taiaçupeba
A igreja de Taiaçupeba foi restaurada em março de 1988 pelos artistas Victor Wuo, Zanivam e Ilse Wuo

forro da capela, restaurado por Victor Wuo em 1988



Filmes
Zhang, Weimin (Dir.). Genius of Chang Dai-chien.  San Francisco State University,2011. Filme Ducumentário, 30 minutos.

Gordon, Richard; Hinton, Carma (Dir.). Abode Of Illusion: The Life And Art Of Chang Daí-chien, 1993. Filme Documentário, 59 minutos.

BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO. Cuando Oriente llegó a América.
Contribuciones de inmigrantes chinos, japoneses y coreanos, 2004. ISBN: 9781931003735. pg. 111-­112

CHINA ON LINE MUSEUM. Zhang Daqian Paintings. http://www.chinaonlinemuseum.com/painting-zhang-daqian.php

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Caminhos Antigos XV


A Freguesia de Santa Cruz do Campo Grande

Rota a pé de Mogi das Cruzes à Taiaçupeba

Partindo da Igreja Matriz no centro de Mogi das Cruzes, até a Igreja da Santa Cruz no centro de Taiaçupeba, são vinte e três quilômetros, quatro horas e cinquenta e um minutos de caminhada.
Inicialmente, seguindo pela rua Major Arouche de Toledo, virando a direita na rua Ipiranga e andando até a avenida Henrique Eroles, cujo início apresenta uma subida íngreme e após uma sucessão de curvas entramos na avenida Japão, até a altura do conjunto Santo Ângelo, onde começa a antiga estrada do Rio Grande que termina um pouco antes do perímetro urbano de Taiaçupeba, como nos aponta o Google Maps. Há mais de cento e cinquenta anos atrás, distância e itinerário semelhantes, conduziam ao bairro da Capela da Santa Cruz do Campo Grande.
Até meados do século XIX a região do Campo Grande abrigava uma formação social dispersa, típica do bairro rural, com o dia a dia abrigando a vida do campo, na lida com a lavoura e criações, servindo como referência para a utilização dos caminhos para Santos, fosse de Jacareí, Santa Isabel, ou mesmo Mogi. Assim, no lombo das tropas de muares, as cargas seguiam saindo da cidade pela rua Ipiranga.
Com a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí (conhecida como “a Ingleza”) a partir dos anos 1860, houve a utilização de mão de obra desta região, principalmente de 1863 a 1867, quando foi inaugurada a Estação do Alto da Serra e, muito provavelmente, alguns trabalhadores ali se fixaram, tendo por concreto a benção da Capela do Campo Grande no ano de 1864, um pequeno agrupamento de casas, com umas duas dezenas de moradias. Diante da relativa proximidade com a estrada de ferro inglesa, a região e os seus representantes anteviam uma prosperidade e crescimento futuro.
Sendo um local de passagem e também de pessoas já estabelecidas, o bairro contava com a virtude e potência presentes na cruz, símbolo do catolicismo oficial, indicativo do local de culto.
Dentro de um “catolicismo social” ou de uma devoção popular, contava também com a função do culto às almas, de marcos de sepultura, da defesa dos andarilhos contra mal feitores e principalmente, estas Santas Cruzes representavam a presença divina entre os homens, estabelecendo a ordenação espiritual do universo, entre homem e natureza, humanizando os ciclos biológicos da vida e da morte. Desta maneira,  podemos compreender porque estes locais estabelecem a invocação da Santa Cruz em sua capela para os cultos populares.
Do mesmo modo que a Assembleia Legislativa Provincial havia elevado à Freguesia, em 1838, as Capelas Curadas de São José do Paraitinga (atual Salesópolis) e Itaquaquecetuba, passados cinquenta anos, em 1888, era enviado à Assembléia paulista, através da Câmara Municipal de Mogi das Cruzes, uma proposição dos moradores da Capela de Santa Cruz do Campo Grande (atual Taiaçupeba) visando sua elevação em Freguesia.
A resposta da Assembleia era favorável a esta transformação, frisando, no entanto, a falta de cadeia no local, porém, contando com “boa Igreja, cemitério e pessoal suficiente.
O cemitério da povoação obedecia às normas e preocupações sanitárias que determinavam “o estabelecimento dos cemitérios fora dos templos...”, sendo benzido em novembro de 1885, após missa na capela e em seguida, procissão no sentido capela-cemitério e do benzimento com todas as formalidades do Ritual Romano.
pedido para elevação à freguesia 1888, parecer favorável
Ao chegar no Campo Grande em 1888 o viajante encontrava uma povoação expressa da seguinte maneira na proposição dos moradores: ”contem este bairro já edificada e funcionando uma excelente Capela, bem como um Cemitério convenientemente cercado e provisionado.
É nessa Capela que os suplicantes assistem ao Culto Divino, aos domingos e dias santos, sendo nela celebrados o Santo Sacrifício da Missa e mais atos religiosos que são postos em prática pelo Reverendo Vigário da Paróquia de Mogi das Cruzes e outros sacerdotes aos quais temos retribuido … possui oito quarteirões devidamente providos de seus Inspetores, contendo cada um deles um número de vinte e cinco fogos, dos quais tomando-se o termo médio … a população relativa... é 3000 habitantes. A referida capela possui os paramento e acessórios necessários ...
Quanto à divisas é força declina-las a fim de que... reconheçam a racionalidade do pedido que os suplicantes ora fazem e são elas : tem começo na linha do Alto da Serra que divisa o município de Santos com o de Mogi das Cruzes e o lado do Sul para o Norte, principia no bairro denominado Quatinga até o rio Tayssupebasú de cuja cabeceira desce até a ponte do Rio Grande tocando a Estrada da Estação da Estrada de ferro Ingleza deste nome, seguindo por ela (estrada de rodagem) a encontrar o rio Jundiay subindo-se ao mesmo até o ribeirão da Estiva, em continuação do mesmo rio até o bairro Biritibassú...”
A proposição dos habitantes da Santa Cruz terminava com a assinatura de dezoito pessoas, todas cidadãos residentes no local: dez delas colocavam ao lado do nome, a identificação lavrador e oito, ao lado da assinatura, a identificação eleitor.
Porque o pedido era encabeçado por eleitores? Qual o significado de eleitor no governo imperial do século XIX?
A lei eleitoral de 1881, redigida pelo então Deputado Geral Rui Barbosa, ficou conhecida por Lei Saraiva ou Lei do Censo. Em seu artigo segundo, estabelecia que era eleitor, aquele que apresentasse renda anual não inferior a 200$000, podendo também candidatar-se, o cidadão que tivesse renda proporcional à importância do cargo pretendido (vereador, juiz de paz, deputado, etc.).
titulo de eleitor em 1881
Figurava nesta lei os inovadores títulos de eleitor que deveriam conter, além da indicação da província, comarca, município, paróquia, distrito de paz e quarteirão, o nome, idade, filiação, estado, profissão, domicilio e renda do eleitor.
O moradores do Campo Grande moviam-se e reinvindicavam a elevação do bairro para Freguesia em vista de obter serviços religiosos com maior constância e também, em função da importância que o local ia aos poucos adquirindo. As autoridades, também em função da obtenção de poder político, e possibilidade de estabelecer relações de poder na e além da freguesia.

Capela Curada ou curato
No Brasil, durante o período Colonial até a proclamação da República, o título de Capela Curada era fundamental para que um povoado obtivesse o reconhecimento oficial e com isso pleitear o título de Freguesia junto à Assembléia Provincial. Diferentemente dos governos republicanos, convém lembrar que a administração pública nos idos coloniais não era laica, mas integrada com a Igreja Católica.Capela Curada é aquela que conta com ofícios religiosos exercidos periodicamente por um padre (o cura) e apenas os locais onde as celebrações religiosas ocorriam com regularidade poderiam ser denominados como Capela Curada.

Frequesia
Era atribuído o título de capela curada ao lugar que tivesse determinada importância, sendo que, somente o lugar que fosse capela curada poderiam os habitantes e principalmente políticos reivindicar a elevação para freguesia.        
A menor divisão administrativa existente no antigo Império Português corresponde à Frequesia. O Brasil Colonial possuia uma organização semelhante e durante o Império, a Igreja Católica considerada como religião oficial, era mantida pelo Estado, que tinha o dever de pagar salários para padres e bispos. Deste modo, era adequado que a estrutura administrativa civil não fosse distinta da estrutura eclesiástica. As províncias eram divididas em municípios que por sua vez eram divididos em freguesias. As freguesias correspondiam às paróquias, mas também havia curatos para serviços religiosos em povoações pequenas e sem autonomia política. Por sua vez, o bispos comandavam as dioceses, típica organização administrativa religiosa, que abrangiam geralmente diversos municípios, ou seja, diversas freguesias.
Taiaçupeba ou Santa Cruz do Campo Grande
Somente a Assembleia Legislativa Provincial poderia criar uma Freguesia, em função disto é que temos o pedido dos habitantes da Capela da Santa Cruz do Campo Grande dirigido à Assembleia, intermediado pela Câmara de Mogi e sendo assinado principalmente pelos eleitores do local, pois estes elegiam os deputados da Assembléia Legislativa e assim iniciava-se uma rede de influências políticas em eleições regionais e locais.
Apenas com a proclamação da República, houve uma total separação entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, de modo que as antigas províncias transformaram-se em estados autônomos divididos em municípios também autônomos que, por sua vez, podem (ou não) ter seu território dividido para fins puramente administrativos. A Igreja Católica passou a manter uma estrutura administrativa distinta.

Fogos/residencia/quarteirão
Fogos eram as casas ou famílias que formavam o quarteirão
Com o Código do Processo Criminal de 1832, o cargo de inspetor de quarteirão foi introduzido no sistema de policiamento brasileiro em freguesias, vilas e cidades. Os inspetores de quarteirão eram selecionados pelos juízes de paz entre a população dos distritos. Recebiam poder (não era raro o abuso de poder) para atuar em seu quarteirão, podendo prender em flagrante, repreender e quando a repreensão não fosse atendida poderia fazer assinar “termo de bem-viver.”

Para saber mais
Arquivo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
A “Gazeta de Mogy das Cruzes” dizia em sua edição n°5, de março de 1881, que a linha férrea “Ingleza”, ficava a dois passos dos “Campos do Santo Ângelo.” Disponível em www.dialeticacultural.blogspot.com.br.
E.E. Benedito de Souza Lima. Meu Bairro, Minha História, Meus Valores (org. Dialética Cultural). http://dialeticacultural.net/Meu-Bairro%2C-Minha-Hist%C3%B3ria%2C-Meus-Valores.php
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL.  Lei Saraiva.  Disponível em  http://www.tse.jus.br

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Caminhos Antigos XIV


Portugueses e Espanhois no Novo Mundo:resistência na Serra do Mar

Serra do mar, Bertioga, Mogi das Cruzes

Para quem olha no sentido litoral – planalto, a Serra do Mar parece uma verdadeira muralha, só permitindo ultrapassá-la através de gargantas por onde passaram os primeiros colonizadores seguindo as trilhas indígenas.
Esta característica topográfica da Serra do Mar é apontada por Dinah Silveira de Queiroz (autora do romance A Muralha), ao retratar, através da personagem Cristina (na minisérie da TV nome da personagem Beatriz) - recém chegada de Portugal no início da colonização do Brasil - a dificuldade de se locomover de São Vicente aos Campos de Piratininga (São Paulo). A paisagem assim descrita, compõem-se de um “... desfile tenebroso de montanhas, que se encostavam erectas umas às outras, numa procissão de guardas gigantescos...” configurando uma “enorme muralha verde-escuro barrando o horizonte ... mais alto do que passarinho pode voar!” (Queiroz, 2000 :20).
Mesmo com essa defesa natural, alguns caminhos de acesso litoral-planalto preocupavam as autoridades portuguesas no sentido de ataques ao litoral, por exemplo Bertioga ou Santos, e em seguida à cidade de São Paulo.
Em branco o contorno da serra do mar
É assim que, a 10 de março de 1777, uma segunda feira, após enchentes que destruíram na semana anterior, os caminhos e pontes dos arredores da vila de Mogi das Cruzes, chegava o aviso endereçado ao capitão mor, dando conta que a armada espanhola atacava a ilha de Santa Catarina e que poderia se dirigir e desembarcar na cidade de Santos.
As disputas entre Portugal e Espanha já ocorriam há algum tempo. Através do século XVIII, as fronteiras do território brasileiro foram objeto de constante discussão entre Espanha e Portugal. Possuidoras de territórios coloniais que outrora haviam sido demarcados e divididos pelo Tratado de Tordesilhas em 1494, passados dois seculos e meio, novas demarcações coloniais se impunham em função de andanças pelo sertão, descoberta de minerais preciosos, estabelecimento de rotas, fundação e fixação do povoamento.
Sucintamente, as questões de limites entre as colônias de Portugal e Espanha, que impunham discussões, foram abordadas nos seguintes tratados: Tratado de Lisboa (1681), Tratado de Utrecht (1715), Tratado de Madri (1750) que redefiniu efetivamente as fronteiras entre as Américas Portuguesa e Espanhola, anulando o estabelecido no Tratado de Tordesilhas e o Tratado de Santo Ildefonso (1777) que confirmou o Tratado de Madri e devolveu a Portugal a ilha de Santa Catarina.
Desde pelo menos o início do século XVIII com as descobertas auríferas em Minas Gerais e logo a seguir as minas de Cuiaba e Goias, foram os agentes da colonização, tais como, bandeirantes, missionários, comerciantes, aventureiros, funcionários ligados a Coroa, povoadores, que penetraram o território ocupando terras e provocando uma nova realidade de ocupação territorial.
Elaborado e enviado em 1749 para Madri, o Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional ou Mapa das Cortes, estabelecia e ampliava os novos limites territoriais do Brasil e serviu para o acordo diplomático assinado em 1750, quando os limites foram alterados pelo Tratado de Madri, que em seu paragrafo III dizia : “pertencerá à Coroa de Portugal tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ... como também tudo o que tem ocupado no distrito de Mato Grosso, e dele para parte do oriente, e Brasil...”
Mapa da Cortes:redefinição de territórios
Estabelecidas as fronteiras, a ocupação fazendo frente ao território espanhol continuava, dificuldades de demarcação ao norte, conflitos envolvendo a Companhia de Jesus (jesuitas), Espanhóis e Portugueses ao sul do território brasileiro, levou a anulação do Tratado de Madri em 1761.
As expedições,oficiais ou não, saiam em direção ao sertão para conhecimento, ocupação e povoamento, o que exigia o recrutamento de homens nas vilas e em 1767, vinte e quatro homens da vila de Mogi eram escolhidos para fazer parte da primeira expedição em direção aos rios Ivai e Tibagi, nos sertões do atual Paraná. Ao todo foram onze campanhas para o sertão entre 1768-1774, com mortes e deserções.
As diferenças entre Portugal e Espanha continuavam e nova tentativa era feita com a proposta inicial da Espanha em julho de 1775 para definir de vez a fronteira das colonias na América do Sul. As negociações eram tensas, ora com avanços, ora com recuos e entravamos no ano de 1777 quando uma carta chega a vila de Mogi das Cruzes, após o emissário enfrentar as dificuldades dos caminhos inundados: ”Como a armada espanhola se acha atacando a Ilha de Santa Catarina, se acaso não estiver já senhora dela, e ser provável que o inimigo venha a esta capitania e especialmente desembarcar em Santos: para evitarmos que possam penetrar para dentro da capitania, devemos fazer toda a resistência no cume da Serra de ambos os cubatões, indo a eles todos os auxiliares e ordenanças que tenham armas e possam pegar nelas; e como é preciso ali sustentá-los, assim como tenho mandado fazer provimento de farinha e feijão no cubatão de Santos, se faz indispensável fazer-se o mesmo no dessa Vila, pelo que ordeno que compre toda farinha e feijão mandando conduzir para o dito lugar, em alguma casa que exista ou fazer um rancho para acondiciona-la e defender do temporal. E por vossa merce de acordo a esse Povo, para que a primeira ordem acuda todo a referida Serra, onde cada um ao modo, com que os honrados Paulistas tem por tantas vezes dado nos Espanhois, o façam agora...na certeza de que tudo o que apanharem aos inimigos, será para eles...”
Tracado original Mogi-Santos realçado
As cartas seguintes, com intervalo de dois ou três dias, insistem na urgência de construir no alto da Serra do Mar, ranchos “de paos à pique fechado para neles se meter a farinha e feijão que for possível” levando todas as pessoas possíveis sem exceção alguma, nem privilégio, porque em tais ocasiões “nem os Eclesiásticos os tem.”. Em abril reportava que o “Cubatão de Mogy está acabado.”
Nas cartas dirigidas a Mogi que antecederam este episódio é grande a menção e procura de desertores, sendo que a incorporação forçada para expedições militares causava a fuga “para o mato” e talvez explique o recurso usado ao chamar os  “honrados paulistas” ou referir-se a “antigos paulistas destruindo inimigos”, procurando assim, com a invocação da memória de um passado paulista, não mais existente, onde figurava idealizado, o brio, a honra, a coragem e, a partir de uma situação específica, passava-se a construir e sedimentar o apelo à união. A realidade era bem diferente, pois, não eram poucas as vezes, ou casos como o de Luiz Mendes, que talvez ilustre uma situação que não era única, antes, bastante comum em Mogi e outras regiões da capitania: ”vamos a prisão de Luiz Mendes e dos Desertores que o acompanham na vida que levam pelos matos, rebeldes ao Serviço, as Leis, e à Sociedade Humana... convoque ordenanças bastante e auxiliares... e resistindo eles, poderá a mesma tropa segurar lhes com tiros, para virem vivos receber as penas que merecem.”, ou para o juiz ordinário de Mogi “visto os levantados desertores e criminosos terem se aquilombado nesses matos com armas e resolução de resistir... se não quiserem se render se lhes atirem pelas pernas.”. O mesmo juiz ordinário da vila de Mogy das Cruzes recebia novamente ofício com a ordem de prender Luiz Mendes e seguidores, não só por ter tentado atirar duas vezes no capitão do mato que o perseguia mas por ter dito do governador da capitania que gostaria de pegar-lhe a “Cabeça para fazer de Cuia..”, recomendava-se prender os insolentes que infestam esses matos, segurando-se, se resistirem com tiros pelas pernas “porque desejo apanhá-los vivos”, dizia o governador.
Estes habitantes, rebeldes aos ditos reais impostos por Portugal à colônia, incompreendidos em seus quereres e falares (pois muitos, se não todos, sequer falavam a língua portuguesa, mas a Língua Geral, o Nheengatu dos Tupi e de Anchieta), terminaram por fornecer o toque final à composição étnica e cultural do Paulista, o mameluco descendente de índios e portugueses, o antigo Bandeirante, que agora vai se confinando nas matas, vai se "aquilombando", rompendo as ligações com a metrópole e criando suas próprias, mais individualizadas, mais estreitas. Reproduzem a antiga grande família nuclear tupi, com a troca de serviços e obrigações, o mutirão, o compadrio e o cunhadismo, presentes ainda hoje no que se reconhece como bairro, o espaço social por excelência, e depois, muito depois, espaço territorial.
Quanto à questão do abastecimento (farinha e feijão), o episódio gerou uma intensa troca de correspondência entre as capitanias de Minas, São Paulo, e os capitães das vilas no caminho Serra da Mantiqueira – São Paulo, para montar uma rede de transporte para o abastecimento das tropas, devendo os alqueires de farinha serem transportados pelo menos até a vila de Mogi, e daí para São Paulo, como dizia o governador da capitania: ”donde farei transportar em algumas bestas que puder conseguir, e as costas de Índios e escravos.” ou “por rio em canoas.”
Em 1º de outubro de 1777 foi assinado o tratado de Santo Ildefonso, entre Portugal e Espanha, para encerrar a disputa entre ambos. A Espanha coube territórios que hoje fazem parte do Rio Grande do Sul e Uruguai e Portugal teve devolvida a ilha de Santa Catarina que fora ocupada poucos meses antes como vimos.


Alqueire/litro
O alqueire era uma antiga medida de capacidade usado para cereais, mas de volume variável. Na região de Lisboa equivalia a 13,8 litros, no Brasil valia 12,5 litros. Também era a medida de um saco: seis alqueires faziam um saco = 75 litros = 75 quilos

Definições de cubatão
Pequena elevação na base de uma cadeia de montanhas
Habitação rústica tipicamente africana, geralmente de telhado cónico coberto de folhas ou palha, o mesmo que choça.
Do africano kubata = rancho, mais o aumentativo ão = rancho grande

Para saber mais
FERREIRA, Mário Clemente. O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia. Varia hist., Belo Horizonte, v. 23, n. 37, June 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php? Acesso Junho 2012.
HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. A época colonial,  volume I, São Paulo: Difel,1972.
QUEIROZ, Dinah Silveira de. A Muralha. São Paulo: Record, 2000.