quinta-feira, 15 de março de 2012

Revisitando Mário de Andrade e Lévi-Strauss em Mogi das Cruzes

Revisitando Mário de Andrade e Lévi-Strauss em Mogi das Cruzes, 1936: um manual de persistência e resistência.
Angelo Eduardo Nascimento Nanni e Antonio Sérgio Azevedo Damy
"... só uma cena fugaz, um canto de paisagem, uma reflexão agarrada no ar permitem compreender e interpretar horizontes que de outro modo seriam estéreis"[1]
Claude Lévi-Strauss e Mário de Andrade
Claude Lévi-Strauss










A citação que se segue é de um modernista, talvez o mais incisivo, o criador de Paulicéia Desvairada e da poesia moderna brasileira, Mário de Andrade:
[...] já me acostumei a reconhecer que justamente os arredores da Capital são verdadeiros mananciais de surpresas folclóricas. [...] a nossa lustrosa capital é toda orlada assim dum caipirismo tenaz [...], que nos transporta [...] a um passado antiqüíssimo em que ainda revivem as danças indígenas e a conversão delas ao catolicismo pela mão adestrada dos Jesuítas.[2]
Acompanhando Mário de Andrade, o maior antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss esteve em Mogi das Cruzes em 1936 com sua esposa Dina Lévi-Strauss, para filmar o Divino. Diz Lévi-Strauss: “Ele (Mário) nos iniciou nas tradições populares e indígenas e, juntos, viajamos até Mogi das Cruzes.”[3] Para entender como Mário de Andrade e o casal Lévi-Strauss escolheram Mogi das Cruzes como pouso, vamos traçar uma pequena trajetória de nossos personagens antes de sua estadia na cidade.
Mário de Andrade, ainda nos anos 20, iniciou uma atividade que continuaria pelo resto de sua vida: um trabalho meticuloso de documentação envolvendo história, cultura e essencialmente a música popular do interior do Brasil, principalmente de São Paulo e Nordeste.
Viajante incansável e observador atento, após o Curso de Etnografia ministrado por Dina Lévi-Strauss, cria a Sociedade de Etnografia e Folclore em 1936 com o intuito de "[...] promover e divulgar estudos etnográficos, antropológicos e folclóricos."[4] vinculada ao Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Necessário dizer que o Departamento de Cultura foi dirigido por Mário de Andrade de 1935 à 1938.
É um período singular na história da formação da inteligência brasileira, coincidindo com a criação da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e Política (na década de 40, Herbert Baldus, professor da Cadeira de Etnologia do Brasil, irá se tornar um dos maiores expoentes da moderna etnografia brasileira). Assim, a recém criada Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), reunia entre seus sócios fundadores, nomes como os de Mário de Andrade, Claude Lévi-Strauss, sua esposa Dina Lévi-Strauss, a etnomusicóloga Oneida Alvarenga e Plínio Ayrosa, entre outros.
É neste efervescente ambiente intelectual que, em 1936 Mário de Andrade chegou a Mogi das Cruzes, acompanhado do casal Lévi-Strauss para documentar a Festa do Divino e preparar, conforme escreveu em seu artigo para a Revista do Arquivo Municipal sobre a “Entrada dos Palmitos”[5] “[...] as filmagens que o Departamento de Cultura realizaria no dia seguinte”.
Os filmes a que Mário se referia são: “Festejos populares em Mogi das Cruzes – Cavalhada”, “Moçambique – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, “Festa do Divino Espírito Santo” e “Congada – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, os dois últimos assinados pelo casal Lévi-Strauss.
A presença do casal não é mera coincidência e sim fruto dos esforços de Mário de Andrade para a criação da Sociedade de Etnografia e Folclore. A SEF necessitava de uma base teórica que justificasse seus projetos futuros, Dina a sedimentou com o Curso de Etnografia, estruturado em 23 aulas abordando aspectos técnicos para a observação, pesquisa e coleta de materiais etnográficos e culturais (que hoje poderiam se traduzir por aspectos materiais e imateriais da cultura ou ainda, patrimônios materiais e imateriais), muito próximo, em seus referenciais do Manuel d’Ethnographie de Marcel Mauss.
Miguelzinho Dutra. Festa do Divino, 1841.Museu Paulista, São Paulo













Dina Lévi-Strauss comentou em sua aula sobre “a dança e o drama” que “[...] A representação dramática é particularmente observável nas festas regionais. Nestas ocasiões – como por exemplo observou-se recentemente em Mogi das Cruzes – formam-se às vezes verdadeiras companhias temporárias de atores [...]”[6].
Como um dos maiores modernistas, Mário de Andrade sabia da importância de documentar as manifestações populares, frente a uma modernidade e uma noção de progresso que ameaçava o “antigo”. Hoje esses registros são importantes para compreender a festa, “vivendo para quem quiser estudar”, como queria Mário de Andrade.
Um ano após estas filmagens, a SEF, propôs o mapeamento folclórico e cultural do Estado de São Paulo, fundamentado nas correntes antropológicas disponíveis à época e principalmente na metodologia desenvolvida durante o Curso de Etnografia de Dina Lévi-Strauss.
Mogi não poderia estar ausente: Mário de Andrade remeteu à vinte destinatários, entre eles Leonor de Oliveira Mello e Gabriel Pereira, uma base investigativa baseada no levantamento das principais ocorrências folclóricas no Alto Tietê, criando uma tipologia para danças, alimentação, benzimentos e simpatias.
O inquérito impressiona por suas dimensões, vejamos por exemplo, o que recomenda para o registro das danças dramáticas:
As observações essenciais no estudo do drama são as seguintes:
  1. Lugar, data e ocasião da festa e qual o motivo da escolha desse lugar, data e ocasião.
  2. Tudo quanto se refira aos atores: quem são, qual sua posição social, quem é o organizador ou proprietário da festa.
  3. O assunto da representação.
  4. Quais as disposições tomadas para realização da festa, tanto em relação aos executantes como os assistentes.
  5. Descrever e recolher os vestuarios, mascaras, disfarces, enfim todos os acessórios de encenação. [7]
No tocante à itens da cultura material, em sua aula 14 (Cultura Material), Dina cita diretamente alguns procedimentos indicados por Marcel Mauss, para a coleta:
Mauss diz que é preciso recolher tudo, pois que tudo é interessante. Uma coleção etnográfica não é uma coleção de obras de arte; mas representa uma cultura e seu interesse consiste nisto, somente nisto. Sobretudo o preconceito de pureza de estilo precisa ser posto de lado. Do ponto de vista etnográfico, não há pureza de estilo, mas sempre mistura, influência, contato de culturas. [8]
Muito embora a SEF tenha encerrado suas atividades de forma prematura, dois anos após sua fundação (os motivos serão matéria de outra abordagem), Mário de Andrade continuou seus levantamentos e o registro etnomusicológico por todo o Brasil.
Experiências recentes neste território contemplam muitas vezes uma releitura do trabalho de Mário. É o caso por exemplo do excelente percurso de coleta, registro e de divulgação de informação etnomusicológica levada a efeito pelo grupo A Barca[9] ao refazer parte do percurso de Mário descrito em seu Turista Aprendiz. Experiência semelhante é possível, senão obrigatória no Alto Tietê: refazer os inquéritos folclóricos para preservar o que ainda persiste e registrar o que está por desaparecer.
Volpi, Mogi das Cruzes, 1932. Museu da Arte Moderna















Fontes

1 LÉVI-STRAUS, C. Tristes Trópicos. Paris: Plan, 1955, p. 55-56.
2 ANDRADE, M. de. Revista do Arquivo Municipal n. XXXIV, Fev., 1937, p. 203-204.
3 LÉVI-STRAUSS, C. Entrevista ao O Estado de São Paulo, 1997. Disponível em http://daedalus-pt.blogspot.com/2003/09/ainda-lvi-strauss.html.
4 SHIMABUKURO, E.H.; BOTANI, A.S.L.; AZEVEDO, J.E. Centro Cultural São Paulo, 2012, p.5
5 ANDRADE, Mario. A entrada dos palmitos. Revista do Arquivo Municipal. V. XXXII. Departamento de Cultura, São Paulo, 1937, p. 51-64.
6 CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. Catálago da Sociedade de Etnografia e Folclore. Apostila do Curso de Etnografia, 11a aula: A dança e o drama, [Dina Lévi- Strauss]. 3p. mimeo.Cx.1, doc.12.
7 Ibid. 28 de Maio de 1938. Transcrito por Mário de andrade.
8 CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. Catálago da Sociedade de Etnografia e Folclore. Apostila do Curso de Etnografia, 14a aula: Cultura Material, [Dina Lévi- Strauss]. 3p. mimeo.Cx.1, doc.12.
9 Chico Saraiva. Disponível em http://www.chicosaraiva.com.br/a-barca.