segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Caderno de Postagens 2012


A Dialética Cultural tem como objetivo a elaboração de projetos, pesquisas e desenvolvimento interpretativo de documentos históricos, itens da cultura material e fatos históricos em museus, bibliotecas e arquivos históricos. Em seu segundo ano de existência, a Dialética Cultural produziu e manteve publicações acadêmicas (Revista Dialética Cultural N. 2),  elaborou, em parceria com a Diretoria de Ensino da Região Mogi das Cruzes,  suporte para o “Projeto Africanidades”, contando com a adesão voluntária de 15 escolas (aproximadamente 10.000 alunos), realizando palestras  e auxiliando na elaboração de exposições.
A exemplo do ano de 2011, para comemorar mais um ano de atividades, brindamos nosso público com a seleção das postagens mais relevantes deste ano de 2012, somando mais de 130 páginas sobre a documentação da região do Alto Tietê.
Na certeza de que o conjunto destas postagens constitui material de pronto auxílio para pesquisadores e estudantes interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre a região, reiteramos nossos sinceros votos de saúde e prosperidade neste novo ano de 2013.
Para visualizar o Caderno de Postagens 2012 click na imagens e a seguir, na aba publicações.

Com os cumprimentos de
Antonio Sérgio Azevedo Damy e Angelo Eduardo Nascimento Nanni, da Dialética Cultural Ltda.

sábado, 29 de dezembro de 2012

29 de dezembro de 1957: Mogi das Cruzes e a política indígena


Recentemente a televisão resgatou a trajetória dos irmãos Villas Boas, defensores intransigentes da cultura indígena e intelectualmente os criadores, junto a outras personalidades do cenário politico, cultural e cientifico, como Darcy Ribeiro, da reserva indígena “Parque Nacional do Xingu”, em 1961.
Essa vitória em 1961, era o desfecho da luta iniciada décadas antes pela preservação dos habitantes naturais do Brasil e que trouxe Orlando Villas Boas à cidade de Mogi das Cruzes, nos dias 28-29 de dezembro de 1957, anunciado-se no jornal da cidade, a concorrida palestra.
Dando sequencia a ações que visavam trazer ao grande público o conhecimento em torno das etnias indígenas e a criação de reservas que os possibilitassem viver, era o que trazia Orlando Villas Boas à cidade, acompanhado do deputado socialista Germinal Feijó, amigo de Mário de Andrade e de Antônio Cândido, que o considerava uma pessoa extremamente combativa.
Para entender a presença de Villas Boas na cidade, voltemos para meados do século passado, mais precisamente nas décadas de 40 e 50, quando parte da etnologia brasileira acreditava que os indígenas e sua cultura estavam destinados à extinção.
Contrario a esta crença, o Serviço de Proteção aos Índios divulgava, a partir de 1942, as suas ações de preservação e instalava uma seção de estudos para pesquisar as sociedades indígenas, sendo que Darcy Ribeiro ampliou essas ações de conhecimento das sociedades indígenas ao inaugurar em 1953 o Museu do Índio no Rio de Janeiro.
Nas ações de campo os irmãos Villas Boas estavam presentes no Alto Xingu desde 1943 com a expedição Roncador-Xingu.É de Orlando Villas Boas as palavras a seguir:Em 1940, as frentes de seringueiros [extratores da seiva dos seringais,], no rio Xingu, no rio Iriri, no rio Iriri alto e no rio Iriri baixo, costumavam entrar nas aldeias indígenas e davam arsênico com farinha para fazer o índio desocupar a área. Nós vimos, assistimos, até muito pouco tempo [atrás], na década da 60, seringueiros de Mato Grosso metralhando índios nas aldeias de [índios] Cinta-larga em Aripuanã [município do estado de Mato Grosso, localizado na Amazônia]. Nós assistimos e foi feito um processo que foi encaminhado até o Serviço Nacional de Segurança, de pioneiros a mandado de seringalistas [seringueiros, donos de seringais], que pegavam índias, abriam, amarravam as pernas e cortavam de facão.
Dos irmãos Villas Boas, Darcy Ribeiro escreveu que “Tinham uma consciência aguda de que, se os fazendeiros penetrassem naquele imenso território, isolando os grupos indígenas uns dos outros, acabariam com eles em pouco tempo. Não só matando, mas liquidando as suas condições ecológicas de sobrevivência.”
Segundo o próprio Orlando, três lemas pautaram sua ação e de seus irmãos: 1) não há lugar para o índio na sociedade brasileira de hoje, 2) o índio só sobrevive dentro de sua própria cultura, 3) já que o civilizado não pode levar nada de bom ao índio, pelo menos respeitemos sua família.
Hoje, perto de Mogi, em Bertioga, assistimos a situação dos índios Guarani do Rio Silveiras, tentando sobreviver, em meio ao contato com uma civilização que mais tira do que lhes dá.


Fontes
Arquivo O Diário de Mogi, dezembro de 1957 - fevereiro de 1958. 


RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 194
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/politica-indigena
PONTES, Heloisa. Entrevista com Antonio Candido. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 16, n. 47, Oct.2001. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092001000300001 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Caminhos Antigos XX



Gente da terra, estrangeiros e os caminhos de ferro.A ferrovia na região Sabaúna-Guararema
Pelos caminhos antigos que ligavam a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro transitaram tropeiros transportando variada mercadoria no lombo de tropas em animais de carga. Em determinados trechos navegáveis, o rio Paraíba também era utilizado, como da Freguesia da Escada até Cachoeira Paulista, como registraram os viajantes do início do século XIX.
Com o desenvolvimento da economia cafeeira no vale do Paraíba, o trabalho do tropeiro e de auxiliares na tropa era procurado em todas as regiões cortadas pela Estrada Geral sendo que o serviço infantil de crianças de dez, doze ou quatorze anos era utilizado como demostra o seguinte contrato de trabalho de 1864: eu, José Maria de Santa Anna contratei com o senhor Alferes... dar-lhe o meu filho legitimo de nome Antônio de Santa Anna de idade de quatorze anos mais ou menos para lhe prestar o serviço de cozinheiro da tropa, sendo para Jacarey e sendo daqui para Santos.”As relações de servidão estendiam-se à infância que não era reconhecida como um tempo de vida, servindo o menor de acompanhante ou trabalhando na tropa de transporte de café.Ao mesmo tempo, a construção dos caminhos de ferro, avançavam pelo século XIX, onde a rapidez e eficiencia do trem contrastava com as tropas e decretava a substituição lenta do tropeiro.
Contemporâneo a este contrato de trabalho na tropa e as atividades do tropeiro no transporte do café, houve a tentativa de construção de uma linha férrea para escoar a produção do Vale do Paraíba para o porto de Santos, via Freguesia da Escada, em 1863.Ao mesmo tempo que a ferrovia Santos-Jundiaí era construída, o engenheiro  inglês Daniel Makinson Fox responsável por aquela construção, procedeu aos estudos de uma via férrea entre a estação do Rio Grande, no alto da serra do Cubatão, e a Freguesia da Escada, daí em diante numa utilização mista, a navegação do Paraíba em conjunto com a ferrovia.
A concessão foi atribuída ao Barão de Mauá que não conseguiu organizar companhia para a construção. Mais tarde, em 1865, o projeto é estendido até Jacareí e a concessão para exploração, atribuída a Gomes Leitão, barão do café e um dos maiores escravocratas e traficante de escravos da província, porém a parte da navegação fluvial, não inspirando confiança para o transporte de café, impediu novamente a criação de uma companhia.
Em 1871, lei provincial decretou a construção de uma linha de São Paulo a encontrar os trilhos da estrada de Ferro D. Pedro II, começando as obras em 1873 e no mesmo ano se trabalhava simultaneamente de São Paulo a Guaratinguetá.
locomotiva Baldwin similar a utilizada na região
A obra foi dividida em três seções: a primeira, de São Paulo à Jacareí, uma intermediária, de  Jacareí a Caçapava  e finalmente, de Caçapava à Cachoeira.  A primeira seção era a que compreendia maiores dificuldades e trabalhos, com pontilhões e pontes construídos sobre tijolos e pedras de cantaria, o que exigia o trabalho especializado do canteiro, com trabalhadores hábeis no corte de pedra, responsáveis também pelo trabalho no túnel dos Piroleiros, aberto em rocha com 240 metros de extensão. Nesta primeira seção da estrada, o rio Guararema, considerado “água dormente” (por adquirir grandes proporções no períodos de cheia), foi atravessado 31 vezes e retificado 25.
carro de passageiro corte interno
Aberto ao tráfego em 1875, nos quilômetros iniciais, até Jacareí, era utilizado para tração a locomotiva Baldwin e carro de passageiros Jackson Sharp.





caro de passageiro para bitola estreita









O trafego na estrada de ferro foi inaugurado em 1875-1876, mas desde 1874 temos moradores de vilas e freguesias trabalhando na estrada de ferro, para terceiros que empreitavam trechos ou secções da ferrovia em construção, assim como novos personagens que chegam à região. Os imigrantes, italianos, portugueses, etc, recém-chegados,  começavam a aparecer  nos registros, como Joseph Feudg, natural da Grã-Bretanha que se obrigava “a prestar qualquer serviço braçal.”
Destacamos como exemplo para tipificar estas novas relações que se estabeleciam, as ocorrências ligadas a dois empreiteiros, João Weber e João Gonçalves Leite em 1876. Neste ano é realizado um auto de corpo de delito em Artur Bartleth ferido mortalmente por arma de fogo próximo à Freguesia da Escada ”na empreitada de João Weber no lugar denominado cabeceira do Guararema.”
No ano anterior (1875) um auto de exame cadavérico feito no alemão Jacob Mantel, feitor de João Weber atribuiu a morte a suicídio tendo como testemunha Pasquale Brocchini “natural da Toscana, Reino da Itália e morador do bairro do Biritiba.”
João Gonçalves Leite, por sua vez, era outro empreiteiro que atuava nesta primeira seção da construção da estrada de ferro São Paulo-Rio de Janeiro, realizando contratos de “serviços na estrada de ferro” e de “rancheiro na estrada de ferro”, ou seja, fornecia “o rancho”, a alimentação nos acampamentos de trabalho, inclusive na empreitada de João Weber com quem estabeleceu contrato.
Com a construção da ferrovia as relações sociais tornavam-se mais complexas, alterando o convívio de pessoas cujos sentimentos e valores vão se transformando gerando diferentes situações que espelham as novas relações de trabalho.

Trajeto da ferrovia e locais de conflito
 
O trajeto da ferrovia passava pela cidade de Mogi das Cruzes em 1875 e seguia para Jacareí em meio a conflitos como os abaixo indicados, ocorrido a meio caminho entre a fazenda Sabaúna, Freguesia da Escada e um pequeno núcleo de habitação denominado São Benedito, perto dos acampamentos de trabalhadores, em junho daquele mesmo ano:
"deu-se um conflito entre alguns estrangeiros da estrada de ferro na empreitada do  Moreira, a quem do Rio Paraíba, com a família de Domingos Pinto, de que resultou ferimentos no mesmo e fractura de um braço da sua mulher e ferimento em seu genro...”

em azul:provavel local dos conflitos.amarelo:empreitada
 
O relato dos acontecimentos que a seguir indicamos nos mostram as mudanças nas relações sociais decorrente da chegada dos imigrantes ou dos "estrangeiros" e como a população local sente desrespeitadas as tradições e cultos locais. Veremos como imigrantes, no caso, portugueses, trabalhadores da ferrovia agridem com gozações, valores e tradições que são preservados pelos moradores da região e como estes reagem resultando em ocorrências policiais. Longe de serem casos triviais estes eventos evidenciam as relações cotidianas e suas alterações.
O inspetor de quarteirão que relatava os fatos, explicava que a família de Domingos Pinto possuía “casa de negócios na linha férrea”.
Instaurou-se inquérito policial por atos de desrespeito à família, com a realização de exame de corpo de delito nas vitimas, tendo sido ouvidas três testemunhas.
A primeira, Bernardino, negociante, morador na Freguesia da Escada disse ser primo irmão da ofendida “estava ele depoente assistindo a festa de São Benedito no bairro da Paraíba e observou um grupo de portugueses trabalhadores no serviço da estrada de ferro do Norte a cargo do Moreira e estes portando-se de modo inconveniente e gracejando com famílias e com o santo de devoção, ele depoente já previa algum acontecimento como de fato posteriormente se deu...”
A família fora atacada por homens que exerciam o oficio de “canteiro” e o depoente dizia saber que os agressores ”foram despedidos do serviço do Moreira, por este subempreiteiro, e viu ele depoente, os mesmo na cidade de Jacareí, onde se acham trabalhando nas obras do cemitério.”
Havia mais duas testemunhas no inquérito: a primeira, um professor público de primeiras letras na freguesia da Nossa Senhora da Escada e a segunda um morador de um bairro rural denominado Itapetí. Ora, qual a razão da agressão?Uma brincadeira com o culto de São Benedito.
Na região havia uma capela voltada para o culto de São Benedito que segundo tradição oral da região teria sido erguida com dinheiro de uma ex-escrava e de habitantes locais perto do rio Guararema. Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro define São Benedito como patrono dos africanos que ” em seu louvor celebravam festas religiosas, em que se exibiam diversões profanas ' e citando a cidade de Cunha, no Vale do Paraíba, São Paulo, diz que 'persiste a crença de o santo ter inventado a dança Moçambique tão popular na região'e que ' São Benedito era trabalhador na roça e para descanso, ele inventou a dança de moçambique”.
A chegada do trem alterou o ritmo de uma sociedade, trazendo a possibilidade de levar o que era produzido na terra e abastecer os centros urbanos distantes com produtos agrícolas.  
O caminho inverso também se tornou realidade, ou seja, da cidade para o campo, onde eram anunciadas viagens nos jornais em direção ao “campo”, os “pic-nics” em moda na Europa. A “Escola Alemã” promoveu um “passeio campestre”, por via férrea, para Guararema em 1884 e Jacareí em 1885, sendo que o local do pic-nic se localizava junto às margens do rio Paraíba.

O tunel dos Piroleiros
tunel dos piroleiros
Hoje conhecido como túnel das piluleiras, no século XIX foi grafado como tunel dos piroleiros, palavra portuguesa (hoje fora de uso e não dicionarizada), usada por exemplo nas atas da Câmara Municipal de São Paulo para designar pessoas ligadas ao comércio de vinho no século XVI, e atualmente em Portugal (com poucas ocorrências), para se referir a brincadeira, avacalhado, etc (por exemplo, na juventude ‘Santo Antonio era um santo piroleiro’). Igualmente notável é a origem espanhola do termo apontado pelos historiadores Luis Felipe de Alencastro e Carlos Lessa, que atribuem à palavra peruleiro (séculos XVI e XVII), a prática de comérco entre portugueses e espanhóis,  entre Brasil e baixo Peru.
tunel dos piroleiros
Com o início do transporte ferroviário a construção de túneis se tornou importante como solução de engenharia para transpor obstáculos.
Neste tipo de construção Portugal teve concluído o túnel Chão de Maças em 1862 com 650 metros de extensão, e mais tarde (1889) o túnel do Rossio com 2613 metros atravessando a cidade de Lisboa
É perfeitamente justificável que trabalhadores portugueses fossem designados para seções da obra que apresentassem a dificuldade na abertura de tuneis.

Piroleiros, palavra portuguesa ou dialeto da galia segundo alguns dicionarios, mostra a presença de trabalhadores imigrantes na região que deixaram sua marca na denominação do tunel. 
tunel dos piroleiros desativado ao lado do traçado utilizado hoje
Para saber mais
Alencastro, L.F. (2000). O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, pg. 110.
ARQUIVO HISTÓRICO DE MOGI DAS CRUZES. Inquéritos policiais, autos criminais, 1875.
NANNI, Angelo E. Nascimento Nanni. Entre o sonho e a realidade: a constituição do núcleo colonial de Sabaúna. Mogi das Cruzes, SP: Dialética Cultural Editora, 2012.
LESSA, Carlos. O Rio de todos os brasis. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, pg. 32-34.

Fonte das imagens
Railroad Museum of Pennsylvania, 
O novo mundo, http://memoria.bn.br/DocReader/DocReade, 
http://www.estacoesferroviarias.com.br/sp-obrasdearte/tunelpiruleiros.htm
mapa http://bndigital.bn.br/

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Caminhos Antigos XIX

 Caminhos da tradição

igreja do bairro de Santa Catarina
Depois de mais ou menos 280 quilômetros de andanças em algumas estradas de asfalto e muitas de terra, ouvindo pessoas e fotografando as obras de José Benedicto da Cruz, voltamos onde ele fez suas primeiras obras sacras, na Matriz de São Benedito em Biritiba Mirim e a igreja do bairro de Santa Catarina, na mesma cidade, distante cinco quilômetros do centro.
Saindo de Mogi, pode-se seguir direto por asfalto para Biritiba Mirim ou então até o distrito César de Souza e pela estrada do Rio Acima chegar ao bairro de Santa Catarina, onde um bar construído em 1918 divide o espaço com a Igreja e mais duas ou três casas.
Segundo Eduardo Etzel, foi em Biritiba Mirim e no bairro de Santa Catarina, que JBC começou a desenvolver toda sua genialidade através de suas pinturas sacras.
Para Etzel era incompreensível existir uma construção do tamanho da igreja de  Santa Catarina, no que ele chamava de construção “desproporcionada para o deserto onde se situa”, no entanto, a região estava perto da área do terceiro distrito do Núcleo Colonial de Sabaúna, portanto, além dos moradores já fixados e dispersos em sítios naquela região, agregava-se outros vindos recentemente para ocupar as terras coloniais de Sabaúna, que em 1905-1910, ano das pinturas sacras de JBC em Biritiba e Santa Catarina, vivia seu florescimento como núcleo agrícola.
interior da igreja de Santa Catarina-Biritiba Mirim
A igreja de Santa Catarina impressiona pelas dimensões, com coro da nave, capela mor, sacristia e compartimentos laterais, no entanto, é semelhante a outras em ambiente rural, onde tinha a função de atração e socialização dos membros do bairro que viviam a certa distância do templo, o que explica suas dimensões e seu quase isolamento no dia a dia, interrompido por festas e missas (um antigo morador afirmou que nos anos 50 – 60 as festas eram semanais).
Das igrejas visitadas e documentadas por Etzel, Santa Catarina é a que contava com uma pequena descrição, somente da pintura do forro azul da igreja, decorado por nuvens brancas que circundam a imagem da santa. Podemos arriscar dizer que os dois altares laterais e o altar mor também foram feitos por JBC, pois, são semelhantes às construções dos altares laterais de Quatinga (igreja hoje inexistente) e da antiga igreja de Biritiba Mirim, atribuidos a JBC. Os elementos decorativos que compõem o altar como as colunas, a parte superior destas, o frontão (com o coração no centro) e o acabamento superior em formato triangular em tudo são semelhantes aos retábulos laterais de outras igrejas e o rendilhado do altar mor, assim como outros atributos, também se assemelham a outros trabalhos de JBC.
Podemos afirmar, que das dez igrejas e capelas construídas ou adornadas por JBC, apenas a de São Sebastião ainda resiste, mantendo a configuração original do artista, pois um antigo zelador da igreja de Santa Catarina descascou o reboco decorado original da parede, para realizar nova pintura.
A pintura que vemos hoje decorando o interior da igreja, foi feita por Dimas Pintor, morador de Biritiba Mirim, desde 1968, e tendo cursado Artes Plásticas, conhecia o trabalho de JBC e possuia fotos antigas do interior da igreja, podendo assim basear-se para construir moldes semelhantes a pintura original e proceder a decoração, inclusive a marmorização da parte baixa das paredes. Segundo sua informação, a intervenção se resumiu à nave principal da igreja, sendo a pintura do forro e demais ambientes mantidas.
Saindo da igreja de Santa Catarina rumo a Matriz de Biritiba Mirim, distante cinco quilômetros, encontramos pouco da obra de JBC. A matriz de São Benedito, originalmente pintada por JBC entre 1905 e 1910, passou por sucessivas perdas: "Por ocasião de uma reforma com ampliação da igreja a capela mor foi incorporada à antiga nave e acrescentou-se uma nova capela mor. Neste transcurso perdeu-se a pintura de São Benedito, que caracterizava a igreja... No forro da nave permanece intocado o grande painel ... da Imaculada". É esta recriação da obra do pintor espanhol Murillo (1617-1682) realizada por JBC, a que mais  chama atenção do crítico Etzel, pois é ali que o artista caboclo mostra toda a sua "audácia e capacidade artística ... a coragem de pintar os anjos de Murillo à sua própria feição, fazendo-os como pediam sua capacidade e intuição..." (Etzel, 1978).
Em reforma bem mais recente, a Igreja passou por nova ampliação e todo o forro com as pinturas de JBC foi removido e substituído por um "moderno" forro metálico de gosto duvidoso. O painel com a complexa pintura da Imaculada foi incorporado junto a capela lateral direita. Quando visitamos a matriz, era ali que se reunia um pequeno número de mulheres em longa oração, sob o olhar da Imaculada.


altar mor, Igreja de Santa Catarina
Tradição, memória e cidadania

Em 1980, o tema da música “Tradição”, inquietava seu autor (André Barbosa, mais conhecido como o B. Anderson de Tell me once again) que se perguntava:

Alguém diz onde se esconde / A memória nacional
Contam que está morrendo / Outros que nunca existiu
Falam que foi pro estrangeiro / D'onde nunca mais saiu
Oh! Seu moço me responda / Não estaria ai no Rio?
Ou quem sabe desgostosa / Foi pra Portugal de navio

A modernidade não é incompatível com a tradição, antes, a preservação do trabalho humano, do saber e do saber fazer é preservação da memória e uma questão de cidadania.
restauro das igrejas do Carmo, Mogi das Cruzes
Para o historiador José Murilo de Carvalho,  o termo cidadania pode ser compreendido racionalmente pelas lutas, conquistas e derrotas do cidadão brasileiro ao longo da história nacional e envolve ação e o alcance de tal definição pode ser aplicado ao patrimônio histórico de Mogi quando do tombamento das Igrejas do Carmo, onde uma “batalha” se deu na cidade entre aqueles que queriam a preservação das igrejas e aqueles que queriam sua demolição, que foi noticiado assim pela revista Ato em 1982:”Foi uma verdadeira batalha. De um lado os frades carmelitas que queriam demolir as centenarias igrejas das ordens 1º e 3º, do Carmo; de outro, o inconformismo do professor de História Horacio da Silveira apoiado por um grupo de mogianos...”, entre esses, Delfino José de Camargo que visitava as obras constantemente durante a década que demorou o restauro.
O Boletim do SPHAN de 1980 relatava que em 1967, em Mogi das Cruzes, Frei Hilarião Remmerswall, procurador da Província Carmelitana de Santo Elias, enviou um abaixo assinado com 6.184 assinaturas requerendo ao SPHAN, o cancelamento do ato de tombamento das Igrejas do Carmo, pois pretendia derrubar a antiga igreja e construir outra, “mais moderna” e ampla para atender ao aumento da população. Felizmente parte da população encaminhou outra lista, esta sim, favorável ao tombamento e restauro do prédio, que permaneceu em obras de recuperação por mais de dez anos.
A carta denúncia do arquiteto Lúcio Costa ilustra o clima de disputa vivido pela população no final dos 60:
carta de Lúcio Costa
"É incrível que, numa cidade civilizada e florescente como Mogi das Cruzes, se pretenda demolir dois monumentos de tamanho valor e significação. Como pode alguém - e foram milhares os que inadvertidamente pleitearam a pena de morte para as duas pobres igrejas inermes - como pode alguém admitir, em sã consciência, que talhas e pinturas arquitetônicamente integradas sejam destruídas (ou pretensamente removidas) e a cidade se veja assim, motu próprio, empobrecida com a perda dessas insubstituíveis testemunhas da sua origem e tradição, a pretexto da necessidade de dispor de maior espaço para abrigar fiéis (ou infiéis?).”
Já a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, não teve a mesma sorte...
O patrimônio em perigo insiste em lembrar, como é o caso da arte de JBC, que intervenções neste patrimônio devem ser sempre comedidas e geradas através de atitudes preservacionistas e éticas, como demonstra a ação de Dorival Cerimoniário, ''zelador'' da igreja de São Sebastião, um quase menino, que com seus 16 anos,  tem mais consciência de cidadania que muito adulto.
Lembrando que, ao fazermos parte de uma sociedade que passa por constantes mudanças e transições, a preservação da memória é item básico. Se pretendemos alcalçar a tão propalada Sociedade do Conhecimento, temos a obrigação cidadã de democratizar o acesso à informação e compartilhar o conhecimento produzido. 


forro da igreja de Santa Catarina, Biritiba Mirim



detalhe altar mor da igreja de Santa Catarina
 
Para saber mais

CARVALHO, Jose Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 9-10.
O ESTADO de São Paulo, reportagem 21/06/1977, p.22 – 14/06/1977, p.14
REVISTA Eletrônica do IPHAN, http://portal.iphan.gov.br Boletim do SPHAN nº 07 MÊS JUL./AGO. ANO 1980
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Caminhos Antigos XVIII

O guardião da memória e da obra de JBC

Igreja de São Sebastião
A importância da História está, entre outras coisas, em que ela é a memória da sociedade e o ato de preservar é fundamental porque se traduz em lembrar.
Ao procurar recompor a história local, baseamo-nos no confronto entre a documentação escrita e depoimentos e é natural que a quase totalidade destes depoimentos seja realizado por pessoas em idade avançada, método aliás, celebrizado pela pesquisadora Eclea Bosi.
Dorival de Lima Martins Junior
A Igreja de São Sebastião foi uma exceção, uma surpreendente e rica experiência: seu guardião, com ofício reconhecido pela pequena comunidade, nosso anfitrião, zelador do patrimônio material ali instalado, memorialista e colecionista dos pensares e procederes das antigas gerações, Dorival de Lima Martins Junior ou simplesmente Dorival Cerimoniário possui apenas 16 anos!
Bisneto de Pedro Tiago, fundador da Igreja de São Sebastião, divide suas atividades de estudante de Ensino Médio em Taiaçupeba, de internauta ativo e provavelmente das pequenas estripulias comuns à idade, com o cultivo e ao zelo da memória local.
Ao chegar ao bairro de São Sebastião, distante quatro quilômetros de Taiaçupeba, um agrupamento de pouco mais de uma dezena de casas abraçam a igreja, que nos foi aberta por sua zeladora, Sandra, da família Martins, que vem acompanhada por um jovem, que surpreende ao depositar sobre o altar o livro de Etzel, sobre a arte sacra popular e começar a falar com desenvoltura e propriedade sobre JBC e sua obra. Fala com propriedade porque detêm a sabedoria materializadas na história e memória local.
Dorival tem também a prática de tanger o sino da igreja: enquanto muitas igrejas se utilizam de CDs para imitar o sino, aqui ainda se repica o sino para a chamada das missas”. Dorival nos conta, conhecedor dos ritmos e repiques utilizados nos sinos, dos dobrados de alegria, das convocações para a missa, dos dias de festa e dos lentos e tristes dobrados fúnebres.
Segundo as informações fornecidas, a construção da capela teve início, ainda no século XIX, por volta de 1870.
Contemporâneo desta época, o sino da torre da igreja exibe a data da Exposição Nacional de 1861, onde, O público teve ocasião de observar … bombas, fogões, panelas de ferros, chapas ornadas, carros, sino, medalhões, pregos etc, de cobre, latão, bronze, ferro e aço, objetos fabricados em diversas oficinas, e que atestam que a indústria metalúrgica tem uma vida animada nesta côrte.” A exposição nacional de 1861 visava demonstrar a modernização técnica em uma sociedade de senhores e escravos, precedendo a participação do Brasil na Exposição Universal de Londres de 1862.
igreja vista da porta de entrada
Já no século XX, “com uma casa condigna”, a Igreja foi construída numa estrutura de taipa, através dos esforços de Pedro Tiago Franco Martins (falecido em 1962 aos 104 anos) e de seu cunhado, José Nunes, ambos lavradores. “A primeira parte, que seria a nave, onde se encontra a capela-mor e a lateral esquerda, onde se situa o altar de Nossa Senhora do Rosário, foi dada por término no ano de 1904... Teve então como primeiro zelador um de seus fundadores, Pedro Tiago, que teria doado o terreno para a construção da capela.” (MARTINS Jr.).
detalhe do altar com a data 1916
Por volta de 1915 concluiu-se as obras da segunda parte da igreja, a lateral direita, “... onde se encontrava a Capela do Bom Jesus (atualmente Capela do Santíssimo Sacramento)... em 1916 deu-se a benção da capela. Provavelmente é por volta deste ano em que os taipeiros consideram o término da obra.
JBC, conhecido no bairro de São Sebastião como Zé Santeiro foi o responsável pelo acabamento e da decoração da capela: “Zé Santeiro, que nessa época trabalhava na Matriz de Salesópolis, foi procurado para decorar a capela por sua fama de excelente artista e de bom pedreiro...”.
detalhes decoração: arco cruzeiro, forro e altares laterais
Estas informações são plenamente corroboradas por Etzel (1978):José Benedicto da Cruz, pedreiro que era, fez o acabamento da construção. Depois, já como marceneiro, fez o retábulo mor; em seguida, agora como pintor, decorou toda a igreja com uma harmonia decorativa que é digna de admiração.”.
letra de JBC e data do término
A decoração foi feita em etapas, pois além da Igreja de São Sebastião, JBC dividiu seu trabalho com o da Igreja Matriz de Taiaçupeba. Assim, a pintura parece ter sido completada em 1923. No forro do altar-mor, é possível identificar o término desta etapa: “20 de junho de 1919. José Benedicto da Cruz”.
Por volta de 1922, Zé Santeiro vai morar no bairro de São Sebastião, com os dois filhos e a mulher.O santeiro volta a trabalhar dedicando seu tempo somente à capela do bairro. Inicia-se então a segunda etapa da pintura. Nessa época fez e pintou os dois altares laterais da nave, nos cantos do arco cruzeiro. Por muito tempo no altar lateral esquerdo (do Sagrado Coração) ficou o Tabernáculo do Santíssimo (Sacrário) … (transferido atualmente) para o altar do Bom Jesus sob ordem do padre Sérgio Luiz da Rocha Silva... Após o término da decoração... a capela passou por nova ampliação, acrescentando-se um coro e uma torre, obra dada por término em 1928.
Desde a conclusão dos trabalhos de JBC em 1928: “A pintura da capela permanece sem restauração nenhuma, somente com as pinturas conservadas por seus fiéis é que a capela permanece com mais de 100 anos de histórias para contar.”.
forro da igreja
Apesar da relação de carinho e identificação que recebe da população do bairro, uma construção centenária necessita de cuidados especiais. Neste sentido seria fundamental que os agentes públicos especializados na conservação do patrimônio histórico e artístico como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) manifestassem pronto e devido interesse em orientar os responsáveis pela conservação do templo na adoção de atitudes de conservação e mesmo de efetuar pequenos restauros e medidas corretivas em locais onde se fazem necessárias, como o restauro da parte do forro central da nave e a adequação das instalações elétricas.
Na Igreja, no pequeno compartimento que dá acesso à Torre, fizemos uma pequena mas deslumbrante descoberta: Etzel sempre enfatizou que JBC recriara suas pinturas a partir de modelos, como foi o caso do pintor espanhol Murillo e de outros, encontrados em cromos e calendários impressos. E não é, que ali, empoeirado e com a moldura carcomida, encontramos o cromo (Taufe Christi) que muito provavelmente deu origem à pintura localizada na ala direita do altar-mor: João Batista batizando o Cristo. Atualmente, esta “impressão artística” pode ser adquirida pela internet por R$ 19,00!
A pesquisa única de Eduardo Etzel sobre a vida e obra de José Benedito da Cruz permitiu a divulgação da obra do artista entre os setores ditos “letrados” de nossa sociedade, por isso mesmo circunscrita a intelectuais, colecionadores, marchands e alguns poucos apreciadores e estudiosos da arte sacra brasileira. Não é pois de se estranhar o rápido desaparecimento da memória e da obra de JBC. Das dez igrejas e capelas visitadas por Etzel no final dos anos 70, quase nada restou. Algumas igrejas não resistiram a falta de cuidado de padres e gestores públicos. Na Igreja da Ajuda em Guararema, o responsável eclesiástico decidiu-se pela troca do forro e com isto perdeu-se impreterivelmente a pintura ali representada. Nada foi feito para preservá-la, restando tão somente, 4 pequenos lambris de madeira decorada, componentes originais do forro central da nave, e isto, graças a insistência e pertinácia de um servidor público, o Sr. João Figueiredo.
Na delicada Capela do Bairrinho, perto do sítio onde morou, construída e ornamentada inteiramente por JBC, fruto de seu último trabalho, resta-nos apenas contemplar a leveza arquitetônica do conjunto e alguma pintura decorativa na parede lateral, uma vez que as imagens e pinturas murais desapareceram. Em Quatinga velha, não houve danos parciais, pois ali, a Igreja de São Francisco, simplesmente desapareceu por inteira!
Mas junto à tantas decepções, encontramos no antigo “Debroado”, no atual Bairro de São Sebastião,  a Igreja homônima, a “Igreja na Selva” de Etzel, construção centenária e extraordinariamente bem conservada. Construída e decorada integralmente por JBC, a pedido de Pedro Tiago Franco Martins. De todas as capelas e igrejas visitadas é a que permanece mais fiel aos procedimentos artísticos de JBC, e para completar tanta integridade, o encontro deste jovem “fazedor da história”, Dorival Cerimoniário, menino se fazendo homem em sua maior plenitude. Que São Sebastião lhe dê por sempre seu amparo e guarnição nesta sua busca pelo conhecimento.
detalhe anjo forro
Etzel sintetiza a grandeza e singuliaridade desta obra de JBC: “Não cremos que exista no Brasil uma igreja de roça toda decorada com pintura ingênua como esta de São Sebastião. O artista pintou as partes principais, sem preocupação de fazer uma decoração universal como faria se fosse um artista erudito. Assim, na pintura deste templo J.B.C. decorou o que se via olhando-se a igreja a partir da entrada...”.
A fidelidade à obra de JBC cobra o preço do desgaste e deterioração implacáveis do tempo em tão rica e delicada arte, que um olhar minimamente preocupado com a cultura deveria resgatar, antes que se precise de obras emergenciais, pois, obras de emergência tendem a superficialidade, quando se trata de patrimônio cultural.

detalhe forro da capela mor São Sebastião


detalhe retabulo


Para saber mais
ARAUJO, Hermetes Reis de. Técnica, Trabalho e Natureza na Sociedade Escravista. Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 18, n. 35, 1998
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular. São Paulo: CESP, 1978.
MARTINS, Dorival de Lima Jr. Completo álbum de fotografias da obra de JBC na Igreja de São Sebastião. Facebook. Disponível em https://www.facebook.com/media/set/?set=a.219207661533761.48795.100003335870679&type=3.
_____ A história da Capela de São Sebastião. Arquivo pessoal do autor. s.d.
Cerimoniário: é o responsável pela organização das celebrações litúrgicas, organizar procissões, de entrada, saída ou externas a igreja.
Sua presença é fundamental para o correto andamento da missa e funcionamento da igreja.