quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Caminhos Antigos XVIII

O guardião da memória e da obra de JBC

Igreja de São Sebastião
A importância da História está, entre outras coisas, em que ela é a memória da sociedade e o ato de preservar é fundamental porque se traduz em lembrar.
Ao procurar recompor a história local, baseamo-nos no confronto entre a documentação escrita e depoimentos e é natural que a quase totalidade destes depoimentos seja realizado por pessoas em idade avançada, método aliás, celebrizado pela pesquisadora Eclea Bosi.
Dorival de Lima Martins Junior
A Igreja de São Sebastião foi uma exceção, uma surpreendente e rica experiência: seu guardião, com ofício reconhecido pela pequena comunidade, nosso anfitrião, zelador do patrimônio material ali instalado, memorialista e colecionista dos pensares e procederes das antigas gerações, Dorival de Lima Martins Junior ou simplesmente Dorival Cerimoniário possui apenas 16 anos!
Bisneto de Pedro Tiago, fundador da Igreja de São Sebastião, divide suas atividades de estudante de Ensino Médio em Taiaçupeba, de internauta ativo e provavelmente das pequenas estripulias comuns à idade, com o cultivo e ao zelo da memória local.
Ao chegar ao bairro de São Sebastião, distante quatro quilômetros de Taiaçupeba, um agrupamento de pouco mais de uma dezena de casas abraçam a igreja, que nos foi aberta por sua zeladora, Sandra, da família Martins, que vem acompanhada por um jovem, que surpreende ao depositar sobre o altar o livro de Etzel, sobre a arte sacra popular e começar a falar com desenvoltura e propriedade sobre JBC e sua obra. Fala com propriedade porque detêm a sabedoria materializadas na história e memória local.
Dorival tem também a prática de tanger o sino da igreja: enquanto muitas igrejas se utilizam de CDs para imitar o sino, aqui ainda se repica o sino para a chamada das missas”. Dorival nos conta, conhecedor dos ritmos e repiques utilizados nos sinos, dos dobrados de alegria, das convocações para a missa, dos dias de festa e dos lentos e tristes dobrados fúnebres.
Segundo as informações fornecidas, a construção da capela teve início, ainda no século XIX, por volta de 1870.
Contemporâneo desta época, o sino da torre da igreja exibe a data da Exposição Nacional de 1861, onde, O público teve ocasião de observar … bombas, fogões, panelas de ferros, chapas ornadas, carros, sino, medalhões, pregos etc, de cobre, latão, bronze, ferro e aço, objetos fabricados em diversas oficinas, e que atestam que a indústria metalúrgica tem uma vida animada nesta côrte.” A exposição nacional de 1861 visava demonstrar a modernização técnica em uma sociedade de senhores e escravos, precedendo a participação do Brasil na Exposição Universal de Londres de 1862.
igreja vista da porta de entrada
Já no século XX, “com uma casa condigna”, a Igreja foi construída numa estrutura de taipa, através dos esforços de Pedro Tiago Franco Martins (falecido em 1962 aos 104 anos) e de seu cunhado, José Nunes, ambos lavradores. “A primeira parte, que seria a nave, onde se encontra a capela-mor e a lateral esquerda, onde se situa o altar de Nossa Senhora do Rosário, foi dada por término no ano de 1904... Teve então como primeiro zelador um de seus fundadores, Pedro Tiago, que teria doado o terreno para a construção da capela.” (MARTINS Jr.).
detalhe do altar com a data 1916
Por volta de 1915 concluiu-se as obras da segunda parte da igreja, a lateral direita, “... onde se encontrava a Capela do Bom Jesus (atualmente Capela do Santíssimo Sacramento)... em 1916 deu-se a benção da capela. Provavelmente é por volta deste ano em que os taipeiros consideram o término da obra.
JBC, conhecido no bairro de São Sebastião como Zé Santeiro foi o responsável pelo acabamento e da decoração da capela: “Zé Santeiro, que nessa época trabalhava na Matriz de Salesópolis, foi procurado para decorar a capela por sua fama de excelente artista e de bom pedreiro...”.
detalhes decoração: arco cruzeiro, forro e altares laterais
Estas informações são plenamente corroboradas por Etzel (1978):José Benedicto da Cruz, pedreiro que era, fez o acabamento da construção. Depois, já como marceneiro, fez o retábulo mor; em seguida, agora como pintor, decorou toda a igreja com uma harmonia decorativa que é digna de admiração.”.
letra de JBC e data do término
A decoração foi feita em etapas, pois além da Igreja de São Sebastião, JBC dividiu seu trabalho com o da Igreja Matriz de Taiaçupeba. Assim, a pintura parece ter sido completada em 1923. No forro do altar-mor, é possível identificar o término desta etapa: “20 de junho de 1919. José Benedicto da Cruz”.
Por volta de 1922, Zé Santeiro vai morar no bairro de São Sebastião, com os dois filhos e a mulher.O santeiro volta a trabalhar dedicando seu tempo somente à capela do bairro. Inicia-se então a segunda etapa da pintura. Nessa época fez e pintou os dois altares laterais da nave, nos cantos do arco cruzeiro. Por muito tempo no altar lateral esquerdo (do Sagrado Coração) ficou o Tabernáculo do Santíssimo (Sacrário) … (transferido atualmente) para o altar do Bom Jesus sob ordem do padre Sérgio Luiz da Rocha Silva... Após o término da decoração... a capela passou por nova ampliação, acrescentando-se um coro e uma torre, obra dada por término em 1928.
Desde a conclusão dos trabalhos de JBC em 1928: “A pintura da capela permanece sem restauração nenhuma, somente com as pinturas conservadas por seus fiéis é que a capela permanece com mais de 100 anos de histórias para contar.”.
forro da igreja
Apesar da relação de carinho e identificação que recebe da população do bairro, uma construção centenária necessita de cuidados especiais. Neste sentido seria fundamental que os agentes públicos especializados na conservação do patrimônio histórico e artístico como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) manifestassem pronto e devido interesse em orientar os responsáveis pela conservação do templo na adoção de atitudes de conservação e mesmo de efetuar pequenos restauros e medidas corretivas em locais onde se fazem necessárias, como o restauro da parte do forro central da nave e a adequação das instalações elétricas.
Na Igreja, no pequeno compartimento que dá acesso à Torre, fizemos uma pequena mas deslumbrante descoberta: Etzel sempre enfatizou que JBC recriara suas pinturas a partir de modelos, como foi o caso do pintor espanhol Murillo e de outros, encontrados em cromos e calendários impressos. E não é, que ali, empoeirado e com a moldura carcomida, encontramos o cromo (Taufe Christi) que muito provavelmente deu origem à pintura localizada na ala direita do altar-mor: João Batista batizando o Cristo. Atualmente, esta “impressão artística” pode ser adquirida pela internet por R$ 19,00!
A pesquisa única de Eduardo Etzel sobre a vida e obra de José Benedito da Cruz permitiu a divulgação da obra do artista entre os setores ditos “letrados” de nossa sociedade, por isso mesmo circunscrita a intelectuais, colecionadores, marchands e alguns poucos apreciadores e estudiosos da arte sacra brasileira. Não é pois de se estranhar o rápido desaparecimento da memória e da obra de JBC. Das dez igrejas e capelas visitadas por Etzel no final dos anos 70, quase nada restou. Algumas igrejas não resistiram a falta de cuidado de padres e gestores públicos. Na Igreja da Ajuda em Guararema, o responsável eclesiástico decidiu-se pela troca do forro e com isto perdeu-se impreterivelmente a pintura ali representada. Nada foi feito para preservá-la, restando tão somente, 4 pequenos lambris de madeira decorada, componentes originais do forro central da nave, e isto, graças a insistência e pertinácia de um servidor público, o Sr. João Figueiredo.
Na delicada Capela do Bairrinho, perto do sítio onde morou, construída e ornamentada inteiramente por JBC, fruto de seu último trabalho, resta-nos apenas contemplar a leveza arquitetônica do conjunto e alguma pintura decorativa na parede lateral, uma vez que as imagens e pinturas murais desapareceram. Em Quatinga velha, não houve danos parciais, pois ali, a Igreja de São Francisco, simplesmente desapareceu por inteira!
Mas junto à tantas decepções, encontramos no antigo “Debroado”, no atual Bairro de São Sebastião,  a Igreja homônima, a “Igreja na Selva” de Etzel, construção centenária e extraordinariamente bem conservada. Construída e decorada integralmente por JBC, a pedido de Pedro Tiago Franco Martins. De todas as capelas e igrejas visitadas é a que permanece mais fiel aos procedimentos artísticos de JBC, e para completar tanta integridade, o encontro deste jovem “fazedor da história”, Dorival Cerimoniário, menino se fazendo homem em sua maior plenitude. Que São Sebastião lhe dê por sempre seu amparo e guarnição nesta sua busca pelo conhecimento.
detalhe anjo forro
Etzel sintetiza a grandeza e singuliaridade desta obra de JBC: “Não cremos que exista no Brasil uma igreja de roça toda decorada com pintura ingênua como esta de São Sebastião. O artista pintou as partes principais, sem preocupação de fazer uma decoração universal como faria se fosse um artista erudito. Assim, na pintura deste templo J.B.C. decorou o que se via olhando-se a igreja a partir da entrada...”.
A fidelidade à obra de JBC cobra o preço do desgaste e deterioração implacáveis do tempo em tão rica e delicada arte, que um olhar minimamente preocupado com a cultura deveria resgatar, antes que se precise de obras emergenciais, pois, obras de emergência tendem a superficialidade, quando se trata de patrimônio cultural.

detalhe forro da capela mor São Sebastião


detalhe retabulo


Para saber mais
ARAUJO, Hermetes Reis de. Técnica, Trabalho e Natureza na Sociedade Escravista. Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 18, n. 35, 1998
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular. São Paulo: CESP, 1978.
MARTINS, Dorival de Lima Jr. Completo álbum de fotografias da obra de JBC na Igreja de São Sebastião. Facebook. Disponível em https://www.facebook.com/media/set/?set=a.219207661533761.48795.100003335870679&type=3.
_____ A história da Capela de São Sebastião. Arquivo pessoal do autor. s.d.
Cerimoniário: é o responsável pela organização das celebrações litúrgicas, organizar procissões, de entrada, saída ou externas a igreja.
Sua presença é fundamental para o correto andamento da missa e funcionamento da igreja.

Um comentário:

  1. http://odiariodemogi.com.br/padre-autoriza-reboco-em-cima-de-obra-sacra/#!prettyPhoto

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