quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Caminhos Antigos XI

As cavalhadas a beira da Estrada Imperial, a Santa Cruz e outros patrimônios

A série Caminhos Antigos traz uma entrevista que força-nos a olhar o patrimônio humano, por vezes chamado de patrimônio histórico, arquitetônico ou outro nome e que estamos perdendo.
Ao longo de uma conversa realizada a tarde, Dona Luiza revelou muitas coisas de sua história, mas principalmente lembra do trabalho na terra , da venda dos produtos cultivados, devoções, enterros, brincadeiras, em suma do saber e saber fazer do povo.
É importante lembrar neste momento em que muito se discute o patrimônio histórico na cidade, o primeiro projeto inovador de defesa do patrimônio, elaborado por Mário de Andrade em 1936, o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Infelizmente este projeto não foi seguido como deveria e somente nos dias hoje, como afirmou a revista Ciência e Cultura (2006) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, “se vem retomando o projeto original de Mário de Andrade de valorização não só do patrimônio edificado mas também das culturas populares através do chamado patrimônio imaterial”.
O projeto original de Mário de Andrade abrangia um conceito amplo de cultura ao definir “Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos”.Neste sentido Mário pretendia registrar tudo, como por exemplo, as paisagens trabalhadas pelo homem, a arquitetura popular, cruzeiros, capelas e cruzes mortuárias de beira de estrada, música popular, contos, histórias, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias, provérbios, danças dramáticas, gravuras, mapas, livros impressos, etc.
Levando em conta esses exemplos acima, podemos pensar em uma História das paisagens, onde a natureza é passível de sofrer modificações pela prolongada atividade humana e produção   de      instrumentos tecnicos que garantem a existência humana, como é o caso do sítio São João, patrimônio que jaz na estrada do Rio Acima e que foi objeto de estudos realizados a pedido da empresa “Norfolk Distribuidora Ltda.”, em 2008, para avaliação de importância cultural.Esquecido desde então, o sítio São João ficava antigamente em área de produção de farinha de milho com monjolos de pé e farinha de mandioca produzida nas “casas de farinha” com moedor, prensa e possuia todo esse aparato técnico de tempos pré industriais, indicativo do saber fazer do povo.
Exposta ao tempo e intempéries, a prensa e o moedor foram resgatados por iniciativa particular em 2011 e assim vamos tocando o nosso patrimônio cultural, com atitudes pontuais e bem intencionadas de particulares, enquanto esperamos a ação oficial cobrada varias vezes pela imprensa e que não se resume em tombamentos temporarios, pois, afinal quase não há o que tombar no sítio São João.

 



















É desta riqueza de paisagens e costumes que nos conta Dona Luiza, nascida em Mogi das Cruzes, Bairro do Itapeti.
Nos seus quase cem anos de vida, noventa e sete para ser exato, Dona Luiza se lembra da construção da estrada Rio – São Paulo, trecho Mogi Guararema em 1927 - 1928 , quando com enxadão os homens tiravam terra e enchiam as carroças tocadas por burro.
Nesta época de infância as brincadeiras no Itapeti eram pegar limão e usar como bola, a peteca de palha de milho, as bonecas de pano feitas para si e depois para os filhos, pois, carrinhos e bonecas não havia e faz uma crítica velada ao consumo quando diz que hoje as crianças “tem brinquedos para jogar fora, mas no tempo que me criei não foi facil”.Com sete anos ficou sem mãe, ressalta e sempre frisa que foi muito feliz, mas sem esquecer a dureza daqueles tempos, pé no chão, vestido de chita. Vida dura, porem tranquila, o que a assusta nos dias de hoje é a insegurança, pois, nem de dia você pode deixar a casa aberta.
Dona Luiza se lembra muito das modas de viola e dos desafios de verso com o acompanhamento de viola, nas festas e nos casamentos e a diversão ficava por conta deste instrumento junto da sanfona.Existiam bons violeiros, entre eles o João Pituba (pituba significa folgazão) que era bom em inventar modas, tocavam também a cana verde.
Região profundamente devota, o que se constata pelo numero de festas e capelas, diz que “toda a vida que eu me conheço por gente tinha” o Divino, com pessoas durante o ano com bandeiras rodando pelas redondezas, pedindo “esmola” para a festa que se realizava na cidade.
No Itapeti as reuniões religiosas eram momentos em que as pessoas podiam se encontrar, pois viviam em um bairro rural com característica de ser disperso com vizinhos distantes, todos muito católicos e em toda encruzilhada tinha um Santa Cruz, havia o terço e ladainha. Na quaresma a Via Crúcis, trajeto seguido por Jesus carregando a cruz, era representado por quatorze estações (etapas) em caminhada passando nas Santas Cruzes espalhadas pela beira de estrada. Alguns padres dizem não saber porque tanta Santa Cruz, mas Dona Luiza explica ser por uma extrema devoção, tinha muitas, hoje só a Cruz do Pito.
As pessoas não vinham para a missa (na cidade) por ser difícil e longa a caminhada, então faziam a reza, o terço, lá no Itapeti, com café com farinha, café na tigela.O rezador era o Belo Sudário, depois Nhô Chico Pinto.
No Natal, momento maior do catolicismo, desciam a serra e vinham para a cidade assistir a missa do galo, rezada a meia noite, na passagem do dia vinte e quatro para vinte e cinco. Nos outros momentos do Natal só a família.
Aqui na cidade na capela da Santa Cruz, no alto da rua Ricardo Vilela, é para onde vinham os corpos trazidos pelos caminhos da serra em padiola ou na rede e ali assentavam porque não prestava descer corpo em qualquer lugar da estrada. Da capela colocavam o corpo em caixão cedido pela prefeitura e era carregado para o cemitério São Salvador em procissão. Você pode ver que aquela rua vai direitinho na porta do cemitério diz Dona Luiza. Sobre este santuário dizia o jornal da cidade,em 1932, que depois de terminada a Semana Santa, eram iniciadas as obras de reconstrução da capela da Santa Cruz, que segundo “O Liberal“ era “...a mais antiga demonstração de fé erigida pela população de Mogy das Cruzes em tempos immemoriais. Depois de alguns anos em ruina, um grupo de pessoas devotas da Santa Cruz e zelosas das tradições históricas desta cidade tomou a peito a reconstrução da legendaria capella...”.Para o andamento das obras se receberia donativos em materiais e realizavam-se quermesses.
Em frente a Santa Cruz havia uma viela onde os cavalos ou tropas ficavam e ali trabalhava um ferrador.
Desciam para a cidade e no Largo Bom Jesus uma das primeiras paradas era no armazém do senhor Antenor de Souza Mello que era “um bom comprador” dos produtos que traziam, cultivados no Itapeti:feijão, alho, milho, batata, prosseguindo a venda em outros estabelecimentos da cidade.
Ainda no Largo Bom Jesus lembra das cavalhadas, repetindo o quanto era bonito e relembra outros lugares onde se davam as cavalhadas como o campo da Iaiá, onde uma arvore muito grande servia para amarrar animais,também no local em que começa a estrada do Beija-flor na altura de César de Souza, do lado da serra e perto da capela de São Jorge havia um campo de grandes dimensões que podia alojar muitos animais para as corridas, ficando este local junto a Estrada Real que chegava em Mogi e que ainda existe exatamente este trecho, saindo da estrada do Beija flor vai dar no fundo da Casa dos Assados no Botujuru.
Havia diferença entre as cavalhadas corridas no Largo Bom Jesus e estas outras em função do espaço de corrida dos animais. Tinha bastante gente na cavalhada, era em reza do ano, mês de maio tinha reza todo sábado em um lugar ou outro e juntava os compadres, as comadres, todos de cavalo. Hoje em dia ninguém conhece cavalhada, diz Dona Luiza.
Além das diferenças de espaço, parece haver diferença de função, pois, na cidade, no Largo Bom Jesus, nas festas de santo é exibição, noticia de jornal, que faz parte da organização a cargo dos festeiros e no campo faz parte de um ritual de divertimento, de integração dos vizinhos, da família, amigos, compadres e comadres.
Quando voltava da cidade, subia a serra com o filho nas costas pela trilha do Rodeio e depois a trilha do Lambari.
Trabalhou com o marido na roça, praticando uma agricultura familiar, criando animais, plantando, ressaltando diversas vezes a dureza da vida, mas em seguida afirmando serem tempos bons. Possuíam algo fundamental: a terra e uma identidade secular com o bairro traduzido nas crenças e folguedos. A serra, o sertão, era o local do trabalho, da moradia, do dia a dia, da diversão e a cidade a realização do trabalho com a venda dos produtos.
Até recentemente a humanidade vivia um ritmo mais lento, hoje, vivemos um mundo da rapidez, onde os valores do mercado vão dominando todas as etapas da vida, do dia a dia e deixam de lado a humanidade social. Chaplin dizia no discurso final de o Grande Ditador em 1940:”Nós desenvolvemos a velocidade mas nos fechamos em nós mesmos. As máquinas que nos trouxeram abundancia nos deixaram desamparados, nossa inteligencia duros e impiedosos. Nós pensamos demais e sentimos muito pouco. Mais do que máquinas nós precisamos de humanidade”
Lembrando a caminhada com os filhos diz, em tom de censura e graça: agora só de carro tá aqui já tá lá e convida a neta para subir a serra a pé.

As cavalhadas

                               campos onde eram realizadas cavalhadas em Cesar de Souza
 
As cavalhadas foram introduzidas no Brasil pelos portugueses ainda no período colonial e representavam a luta entre mouros e cristãos na península ibérica.
A representação dramática era iniciada com um torneio que reunia uma dezena ou mais de cavaleiros, divididos em dois grupos: cristãos e mouros, representados pelas cores azul e vermelho.
Os grupos faziam evoluções mostrando a destreza em comandar os animais. As cores e aparatos da cavalhada foram confirmadas pelo senhor Luis de Santa Isabel.
Depois destes torneios pode ser seguido o “jogo de argolinhas” onde os cavaleiros mostram habilidades tirando um anel ou argola suspensos por um fio.
O jogo de argolinhas pode ocorrer de maneira independente do torneio entre cristãos e mouros. Dona Luiza confirmou esta ultima modalidade.




                                                                              
Para saber mais
ANDRADE, Mario. Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, a pedido do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema
Os filmes de Mario de Andrade feitos pelo Departamento de Cultura do Município de Sao Paulo podem ser assistidos no Centro Cultural São Paulo
 CANTARINO, Carolina. Ações oficiais precisam ter continuidade. Cienc. Cult., São Paulo, v. 58, n. 2, June 2006
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re)produção do Espaço Urbano.SP:Edusp, 1994

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