domingo, 29 de julho de 2012

Caminhos Antigos X


Senhor Luis:construtor de viola em Santa Isabel.
A solidão dos caminhos, a viola e Deus
Frequentemente escutamos que a viola de dez cordas é o instrumento próprio para tocar “música de raiz”. Mas o que é essa mal definida “música de raiz”? Talvez possamos dizer que é a música produzida no ambiente rural, nas trilhas e estradas do sertão.
E por que a viola de dez cordas é o instrumento próprio para tocá-la?
Porquê esteve presente no Brasil desde os primeiros séculos de colonização e está presente em praticamente todo o território brasileiro, pois, a viola com dez cordas de aço é conhecida por ser do tipo paulista, ou goiana, ou cuiabana, ou litorânea, ou nordestina.
A viola de dez cordas ou cinco cordas duplas existente no Brasil está diretamente ligada às violas tradicionais portuguesas, como a toeira da região de Beira Litoral, viola com doze cordas “de arame”; a braguesa, da região do Minho, com cinco cordas duplas, a mais importante das violas tradicionais portuguesas, usada em bailes de terreiro, romarias e festas; amarantina, do Douro Litoral, semelhante a braguesa com cinco cordas duplas; a beiroa da Beira Baixa, também com cinco cordas duplas de arame, tem além disso, duas pequenas cordas na parte inferior do braço; a campaniça do Baixo Alentejo, maior que as outras este tipo possui quatro cordas duplas e uma tripla.
Com as navegações e a expansão portuguesa, a viola ganhou os mares, primeiro nos Açores com a viola da terra ou dos Açores, aparentada da viola amarantina e depois o Brasil onde as violas de arame penetraram as regiões nas mais diversas formas de diversão – devoção. Festas de terreiro, cantos de trabalho, culto a São Gonçalo do Amarante, Divino Espírito Santo, Folia de Reis, São Benedito e variadas danças (cururu, catira, cateretê).De fácil transporte, as violas acompanharam os homens entrados pelo sertão e qualquer um com bom ouvido, poderia tocá-la de golpe ou de rasgado, apenas com o ritmo da mão direita.
Dada as características da colonização, as violas irão aportar no litoral e mais tarde entrar para o interior da colonia. Em Salvador, por volta de 1682, o pesquisador José Ramos Tinhorão aponta que o poeta Gregório de Matos, conhecido por Boca do Inferno pelo conteúdo de suas poesias, andava sempre acompanhado de uma viola e suas poesias satíricas de conteúdo do dia a dia foram escritas não para serem lidas, mas cantadas e o próprio poeta diz “eu tanjo rasgado...não por pontos”, o que significa “eu toco rasqueado e não ponteado” que são maneiras de tocar viola, tanto aqui no Brasil como em Portugal.
Fosse em cidades, arraiais, vilas, freguesias ou nas estradas com pouso de tropeiros, a viola esteve presente, como nas tropas que passavam por Mogi das Cruzes no início dos anos 1800 em direção ao Vale do Paraíba - Rio de Janeiro onde um tropeiro cantador de nome Cantante estava na lista de pagamentos do dono da tropa ou no pouso da Escada, onde no início dos anos 1830 um juiz advertia algumas mulheres a não fazerem ajuntamento de pessoas em sua casa, viver honestamente a fim de não perturbarem o sossego público com batuques e viola.
Essas andanças do tropeiro foram confirmadas para o sociólogo e estudioso do folclore, Alceu Maynard de Araújo por seu avô, tropeiro que desde 1870 esteve nas trilhas do Rio Grande do Sul a São Paulo e afirmava que nunca vira seus camaradas viajarem sem a viola, que carregavam dentro de um saco.
Esse instrumento, que acompanhou os homens desde o Brasil Colonia, hoje como afirmação de sua presença, exibe 751.000 resultados em busca na internet para as palavras “viola caipirae 21.000 vídeos no youtube para a mesma expressão. Mostra acima de tudo, o vigor de um instrumento com características humanas, afinal as partes de uma viola são: o braço, boca, cintura, orelha (as cravelhas para afinar), costa, pestana e fica doente, resfriada e rouca. Quais seriam as características desse instrumento que se identifica com o tocador?
Formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tendo como professor o etnólogo Herbert Baldus, Maynard De Araújo escreveu em 1959 “Viola Cabocla”, um dos primeiros trabalhos dedicados a este instrumento, onde faz um extenso estudo sobre as características e construção da viola, que naquele momento já se tornava “artigo industrial”, produzido em série. Se de um lado mostrava-se como mercadoria com preço mais acessível, por outro ia se fazendo raro encontrar um “fazedor de violas”.
Mesmo com dificuldade de encontrar artesãos dedicados a fabricação da viola, Maynard Araújo conseguiu em vinte e quatro anos de pesquisas encontrar centenas de informantes, dentre eles um fabricante de Santa Isabel.
As violas feitas de pinho, pinho de riga, cedro e jacarandá, comportavam oito tamanhos que se ajustavam ao gosto do tocador, no entanto, o informante de Santa Isabel dizia fazer somente de três tamanhos”, pequeno, médio e grande, sendo o machete ou machetinho pequeno e assemelhado ao cavaquinho, a média, viola mais procurada e comum e a grande com um metro de comprimento e doze cordas.

Semeando sons no Itapeti
Chegados na pequena oficina do senhor Luis em Santa Isabel, interrompemos uma outra atividade sua que, além de construir violas, fazer consertos em peças de madeira e afiar ferramentas de metal, estava a construir um pilão escavado em tronco de madeira tirada da mata.
Na oficina há uma pequena bancada de trabalho com uma morsa, esmeril, ferramentas diversas para trabalhar com madeira, diversas violas prontas e outras semiprontas.
O senhor Luis conta que existiam em Santa Isabel três fazedores de viola, o Lourenço Carneiro, parente de sua esposa, Claudino Chaves e Israel.
Herdeiro de Lourenço Carneiro, que provavelmente é o mesmo artesão citado por Alceu Maynard de Araújo, o gosto pelo instrumento começou cedo: Quando tinha entre 10 e 11 anos, meu pai, tinha uma viola muito boa, que ajudava a dançar São Gonçalo. Quando eu ia mexer na viola, meu pai ralhava: Não mexe na viola, vai estragar... Aí eu pegava e tornava a guardar a viola e saia chorando: ainda vou fazer uma viola.... E meu pai retrucava. Vai fazer uma viola porcaria nenhuma... Lá em Santa Isabel, viola, só mesmo o Lourenço Carneiro faz...
Pois é, o tempo foi passando, cresci, exerci outros ofícios, mas a idéia ficou gravada! Só depois dos sessenta anos e que comecei a fazer violas.
Apŕendi a consertar instrumentos, as medidas e escalas, sempre procurando um jeito de aplicar melhor os ensinamentos que outros me passavam.
A viola, eu comecei a fazer há mais de vinte anos, quando os violeiros (os fabricantes) mais antigos já eram falecidos e a maior parte das violas encontradas, de fabricação industrial.
Ensinei algumas pessoas a fazê viola, mas é um trabalho muito difícil de se fazer, mesmo marceneiro "oficial" tem dificuldade. Eu mesmo, não sou marceneiro, sou um aventureiro. Pego um trabalho e vou executando ali, pego e faço, sem desenho.
A viola começa com a madeira da frente, as laterais e fundo são cozidas e modeladas na forma. Depois faz o braço, que é encaixado e aí amonta ela. Primeiro a frente, depois as costas e depois vai trabalha com o braço.
Nas violas feitas pelo senhor Luis, chama atenção o desenho que circunda a boca da viola e é um trabalho tão bem feito, uma verdadeira “marchetaria cabocla” que chamou a atenção de um norte americano, que chegou a comprar algumas violas para estudar e tentar compreender os delicados traços do marcheado existente nas violas de Seu Luís. A dificuldade foi que o americano tentou reproduzir este marchetado com máquinas e gabaritos industriais, o que impossibilitou a reconstrução dos motivos encontrados nestas violas. Só muito mais tarde, é que se deu conta de que o “segredo” do marchetado encontrava-se num trabalho meramente artesanal e de filigrana. Seu Luis se diverte ao mostrar a ”máquina” que consiste num pequeno pedaço de madeira com vários pregos onde pacientemente corta com canivete, pequenos e sofisticados pedacinhos de madeira preta e outras brancas que irão formar o desenho, que compreendem a “assinatura” do construtor da viola (como uma impressão digital, só existe aquela), atestando a ligação de seu Luis com Lourenço Carneiro já que a assinatura da viola é a mesma.  Quando prontos, estes pedacinhos serão colados de forma a circundar a boca da viola.
Fiel a mesma técnica de Lourenço Carneiro, seu Luís fabrica três tipos básicos de viola, o que novamente coincide com a pesquisa de Maynard que reporta a existência de 3 tipos de violas isabelenses ou paulistas.
Perguntamos se ainda recebe muitos pedidos para fabricar violas para a dança de São Gonçalo. A resposta é dura: "O grande problema hoje é que o povo, o devoto que Dança São Gonçalo, não tem mais dinheiro para comprar uma viola. O caboclo quer pagar dez reais... Sabe o que nós fazemo com dez reais? Eu não compro nem um surtido. Então o que acontece com as viola? Vai prá fora... As violas senhor Luis hoje podem ser encontradas em Minas, Nazaré Paulista, Atibaia, Barretos, Igaratá, e algumas “semeadas” pelo Itapeti.
Eu tenho mais ou menos uma duzentas violas feitas. A maioria tudo prá fora. E é isso aí, a gente aperfeiçou, fazendo as viola comuns e depois fazendo violas maiores.                                                      
Na verdade é um trabalho manual, de madeira, sem nada de compensado. É um serviço simples.


A viola e as lendas
Viola “pega” mau olhado, fica resfriada se guardar com as cordas viradas para a parede.
Madeira para viola deve ser cortada em meses que não tem R e em lua minguante para não dar caruncho. Viola com caruncho é leprosa.
Viola cura reumatismo e varizes.
O violeiro para tocar bem deve pegar uma cascavel com a mão, retirar o guizo da cobra e guardar na viola.
Outra lenda que existe até hoje é a que fala do pacto que o violeiro faz com o demônio para tocar bem e a respeito disto dizia o poeta Gregório de Matos, em 1668 “...a maior parte destas modas lhe ensina o demônio:porque é ele grande poeta, contrapontista, músico e tocador de viola e sabe inventar modas profanas, para as ensinar àqueles que não temem a Deus”.


Para saber mais
ARAÚJO, Alceu Maynard de. Viola Cabocla, http://www.ntelecom.com.br/users/pcastro4/viola.htm
NEPOMUCENO, Rosa. Musica caipira. Da roça ao rodeio,SP:Ed.34,1999
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular, da modinha a lambada, 6. ed. São Paulo: Art.Editora.1991.
______. História social da música popular brasileira,SP:Ed.34,2002

PODCAST: Entrevista com o senhor Luis www.dialeticacultural.net/podcast


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