quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Caminhos Antigos XVII

José Benedicto da Cruz: o Leonardo da Vinci caboclo

divino, capela santa cruz do bairrinho (Etzel, 1978)

Quando andamos pelos caminhos do sertão em qualquer direção, seja para o lado da serra do Itapety ou para a serra do Mar, encontramos muitas capelas centenárias espalhadas pelo caminho, algumas com dimensões maiores para agrupar razoável número de pessoas, outras menores, só para orações, diversas santas cruzes e ainda capelas abertas para a estrada. Também encontramos construções recentes, onde, em muitos sítios ou “chácaras de fim de semana” o dono mandou construir um oratório ou capela.
região de atuação de JBC no Alto tiete.
A devoção acompanhou a colonização e a expansão humana pelo território e até hoje, qualquer que seja a denominação religiosa, está lá junto aos homens, a casa de Deus.
A presença da religião era tão marcante e intensa que em 1821-1822 chama a atenção como a legislação jurídico-político, no aspecto de auferir legitimidade e seriedade ao ato eleitoral, valia-se de ações simbólico-religiosas através de missas, missas cantadas e te-déuns em ação de graças antes e após os atos eleitorais. Dizia a legislação da época:“Chegada a hora da reunião... se dirigirão com o presidente a Igreja Matriz e nela celebrara o Pároco a Missa solene do Espírito Santo, e fará um discurso análogo as circunstâncias.”
Acabada a missa todos voltavam de onde tinham saído e iniciavam a junta eleitoral. Terminados os trabalhos a junta eleitoral se dissolvia e “Os cidadãos que formaram a Junta levando o Eleitor ou Eleitores entre o presidente, Escrutinadores e Secretario, se dirigirão a Igreja Matriz, onde se cantará um Te-Deum solene.”
Muitas capelas serviram de núcleos de povoamento e se transformaram em freguesias, vilas e cidades, exibindo os paramentos e acessórios necessários ao culto religioso, outras mais simples e distantes, em povoações menores, serviram para reunir as pessoas do bairro e eram decoradas com o trabalho de santeiros, entalhadores de altar e pintores, que até o final do século XIX transitavam por nossa região.
Os santeiros para fazer as imagens de culto doméstico utilizavam como matéria prima a madeira ou principalmente o barro e essas imagens, típicas do século XIX e de nossa região, ficaram conhecidas como paulistinha e povoaram as casas de caboclos e as capelinhas.
Essas imagens, tidas hoje como de grande valor artístico, tinham com centro irradiador a cidade de Santa Isabel onde morava o santeiro Dito Pituba. Além desta cidade e de Arujá, cidade do santeiro Dito Luzia, o pesquisador Eduardo Etzel reuniu na região, no início dos anos 70, imagens paulistinhas em Sabaúna, Taiaçupeba e Salesópolis.
Os locais de culto coletivo como igrejas e capelas, também recebiam o trabalho de artesãos, que se dedicavam ao entalhe de altares e a pintura decorativa.
É neste imaginário de final do século XIX, ainda durante a escravidão, que a 2 de fevereiro de 1877, em Paraibuna, nasce José Benedito da Cruz, conforme consta no assentamento de batismo: “Aos vinte e sete de fevereiro de mil oitocentos e setenta e sete batisei e pus os santos óleos a José, de vinte dias, filho de Benedicto Antonio de Souza e de Maria Francisca”. Seus pais, egressos da Bahia, alcançaram o Vale do Paraíba acompanhando o crescimento da lavoura cafeeira nesta região.
José Benedito da Cruz, caboclo de olhos verdes, “pardão, cor de cuia”, foi um homem simples, católico e religioso, membro da Ordem Terceira do Carmo em Mogi das Cruzes, conforme depoimento de seu filho Ciro Esperidião, recolhido por Etzel em 1977.
mapa 1915, estrada do salto até Sabaúna
Passou sua infância em São Luiz do Paraitinga e aos vinte anos, casa-se em Mogi das Cruzes com Thereza Maria de Jesus, moradora de Biritiba Mirim. (dos dez filhos do casal, apenas quatro chegaram à idade adulta). Durante um bom tempo, residiu numa pequena chácara, situada no Alto do Ipiranga, a qual vendeu para adquirir um sítio no bairro do Salto, na Serra do Itapeti, entre Sabaúna e Guararema, onde passou os últimos dez anos de sua vida.Trabalhou em Sabaúna para onde a estrada do Salto levava diretamente.
Faleceu em 14 de janeiro de 1934, aos cinquenta e seis anos. O atestado de óbito aponta como causa da morte: “alienação mental e caquexia”.
Os apelidos de José Benedicto da Cruz dão um ideia de suas atividades. Era conhecido como Zé Pedreiro, Zé Pintor, Zé Santeiro e Zé Correia. Autodidata, dotado de uma sensibilidade fora do comum, seu ofício “aprendeu de ideia, com o sentido dele mesmo”. Rosa, sua filha, lembra-se de certa vez o pai ter afirmado ser : “capaz de fazer qualquer coisa, e que se quisesse fazia um terno e virava alfaiate”.
pinturas de JBC, capela do Bairrinho (Etzel,1978)
Apesar de, na lida pela sobrevivência dedicar-se essencialmente ao ofício de pedreiro, de pintor de parede e marceneiro, é o trabalho simultaneamente dedicado à arte sacra, que irá compor o conjunto de sua obra: a pintura sacra, a imaginária e a confecção de retábulos e oratórios. É o que comprovam os recibos datados de 1917 e 1918, quando trabalhou na matriz de Taiaçupeba: “... J.B.C. trabalhou como ajudante de pedreiro, pedreiro, pintor de parede e, depois, como pintor da capela mor e dos altares laterais. Seu ganho em todas estas diferentes atividades foi sempre o mesmo: $ 5.000 (cinco mil réis) por dia. O mesmo ganhava na época um carpinteiro...”.
Este foi José Benedicto da Cruz, diarista, criador e recriador de igrejas e pinturas, capaz de realizar uma releitura única das obras clássicas (como as pinturas do espanhol Murillo) e ambientá-las no meio rural e caboclo do sertão do Alto Tietê e do Vale do Paraíba. “... teve a coragem de pintar os anjos de Murillo à sua própria feição, fazendo-os como pediam sua capacidade e intuição. Espelha-se então como um delicioso primitivo que retratou nos anjos a infância pobre e brutalizada que o rodeava na vida simples de sua própria vizinhança.”
mapa da estrada Itapeti do Salto-Capela do Sino
Hoje, seguindo pela estrada Mogi Guararema antes do início da descida da serra de Sabaúna, encontramos uma capelinha ao lado esquerdo, onde começa a estrada Itapeti do Salto.
foto atual, capela do sino, estrada itapeti do salto
Caminhando por ela, localizamos, ainda resistindo ao tempo, numa pequena capela, o trabalho do final da vida de JBC: uma pintura do Santo Sudário, pintado sobre tábuas, que na reforma da capela da Santa Cruz do Sino, foi colocada no alpendre, já tendo sofrido repintura. Seguindo pelo mesmo caminho,  pouco mais à frente, já no território de Guararema, encontramos a Capela da Santa Cruz do Bairrinho (aqui vista nas fotos de Etzel de 1978 e as cores vivas de JBC).Atualmente a Capela da Santa Cruz do Bairrinho conserva somente pinturas decorativas nas paredes laterais, sem referência as pinturas originais de JBC.
Nosso personagem, apesar das pesquisas de Etzel, continua quase anônimo e além de fazer pinturas e ser santeiro, foi “divineiro”, ou seja, fazia delicados Divinos de barro ou madeira, assim como João Caetano, divineiro de Biritiba Ussu, que depois de um derrame, morreu na Santa Casa pobre e anônimo.


Fontes:
ETZEL, Eduardo. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978. p. 16-30 (passim).

Para saber mais
Oratórios: constituem pequenas capelas domésticas para se acomodar as imagens de devoção.JBC fazia e decorava oratórios.
Paulistinhas: imagens de santo, geralmente feitas de barro queimado e confeccionadas principalmente no século XIX.
Retábulos: constituem painéis sacros, entalhados  em madeira, que se posicionam acima ou atrás do altar principal. JBC foi o responsável pela confecção de retábulos  e provavelmente, dos altares das Igrejas do Barroso, Biritiba Mirim, Quatinga Velha  (hoje um patrimônio cultural desaparecido) e São Sebastião.
Te Déuns:  Cântico católico em ação de graças iniciado pela expressão "Te Deum laudamus" (Senhor nós te louvamos).

Publicações
ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São Paulo, apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos/EDUSP, 1971.
______. J.B.C. Um singular artista sacro popular: a obra transcende o homem. São Paulo: Companhia Energética de São Paulo, 1978.
______. Divino, simbolismo no folclore e na arte popular. São Paulo: Kosmos, 1995.


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