terça-feira, 11 de setembro de 2012

Caminhos Antigos XIV


Portugueses e Espanhois no Novo Mundo:resistência na Serra do Mar

Serra do mar, Bertioga, Mogi das Cruzes

Para quem olha no sentido litoral – planalto, a Serra do Mar parece uma verdadeira muralha, só permitindo ultrapassá-la através de gargantas por onde passaram os primeiros colonizadores seguindo as trilhas indígenas.
Esta característica topográfica da Serra do Mar é apontada por Dinah Silveira de Queiroz (autora do romance A Muralha), ao retratar, através da personagem Cristina (na minisérie da TV nome da personagem Beatriz) - recém chegada de Portugal no início da colonização do Brasil - a dificuldade de se locomover de São Vicente aos Campos de Piratininga (São Paulo). A paisagem assim descrita, compõem-se de um “... desfile tenebroso de montanhas, que se encostavam erectas umas às outras, numa procissão de guardas gigantescos...” configurando uma “enorme muralha verde-escuro barrando o horizonte ... mais alto do que passarinho pode voar!” (Queiroz, 2000 :20).
Mesmo com essa defesa natural, alguns caminhos de acesso litoral-planalto preocupavam as autoridades portuguesas no sentido de ataques ao litoral, por exemplo Bertioga ou Santos, e em seguida à cidade de São Paulo.
Em branco o contorno da serra do mar
É assim que, a 10 de março de 1777, uma segunda feira, após enchentes que destruíram na semana anterior, os caminhos e pontes dos arredores da vila de Mogi das Cruzes, chegava o aviso endereçado ao capitão mor, dando conta que a armada espanhola atacava a ilha de Santa Catarina e que poderia se dirigir e desembarcar na cidade de Santos.
As disputas entre Portugal e Espanha já ocorriam há algum tempo. Através do século XVIII, as fronteiras do território brasileiro foram objeto de constante discussão entre Espanha e Portugal. Possuidoras de territórios coloniais que outrora haviam sido demarcados e divididos pelo Tratado de Tordesilhas em 1494, passados dois seculos e meio, novas demarcações coloniais se impunham em função de andanças pelo sertão, descoberta de minerais preciosos, estabelecimento de rotas, fundação e fixação do povoamento.
Sucintamente, as questões de limites entre as colônias de Portugal e Espanha, que impunham discussões, foram abordadas nos seguintes tratados: Tratado de Lisboa (1681), Tratado de Utrecht (1715), Tratado de Madri (1750) que redefiniu efetivamente as fronteiras entre as Américas Portuguesa e Espanhola, anulando o estabelecido no Tratado de Tordesilhas e o Tratado de Santo Ildefonso (1777) que confirmou o Tratado de Madri e devolveu a Portugal a ilha de Santa Catarina.
Desde pelo menos o início do século XVIII com as descobertas auríferas em Minas Gerais e logo a seguir as minas de Cuiaba e Goias, foram os agentes da colonização, tais como, bandeirantes, missionários, comerciantes, aventureiros, funcionários ligados a Coroa, povoadores, que penetraram o território ocupando terras e provocando uma nova realidade de ocupação territorial.
Elaborado e enviado em 1749 para Madri, o Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional ou Mapa das Cortes, estabelecia e ampliava os novos limites territoriais do Brasil e serviu para o acordo diplomático assinado em 1750, quando os limites foram alterados pelo Tratado de Madri, que em seu paragrafo III dizia : “pertencerá à Coroa de Portugal tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ... como também tudo o que tem ocupado no distrito de Mato Grosso, e dele para parte do oriente, e Brasil...”
Mapa da Cortes:redefinição de territórios
Estabelecidas as fronteiras, a ocupação fazendo frente ao território espanhol continuava, dificuldades de demarcação ao norte, conflitos envolvendo a Companhia de Jesus (jesuitas), Espanhóis e Portugueses ao sul do território brasileiro, levou a anulação do Tratado de Madri em 1761.
As expedições,oficiais ou não, saiam em direção ao sertão para conhecimento, ocupação e povoamento, o que exigia o recrutamento de homens nas vilas e em 1767, vinte e quatro homens da vila de Mogi eram escolhidos para fazer parte da primeira expedição em direção aos rios Ivai e Tibagi, nos sertões do atual Paraná. Ao todo foram onze campanhas para o sertão entre 1768-1774, com mortes e deserções.
As diferenças entre Portugal e Espanha continuavam e nova tentativa era feita com a proposta inicial da Espanha em julho de 1775 para definir de vez a fronteira das colonias na América do Sul. As negociações eram tensas, ora com avanços, ora com recuos e entravamos no ano de 1777 quando uma carta chega a vila de Mogi das Cruzes, após o emissário enfrentar as dificuldades dos caminhos inundados: ”Como a armada espanhola se acha atacando a Ilha de Santa Catarina, se acaso não estiver já senhora dela, e ser provável que o inimigo venha a esta capitania e especialmente desembarcar em Santos: para evitarmos que possam penetrar para dentro da capitania, devemos fazer toda a resistência no cume da Serra de ambos os cubatões, indo a eles todos os auxiliares e ordenanças que tenham armas e possam pegar nelas; e como é preciso ali sustentá-los, assim como tenho mandado fazer provimento de farinha e feijão no cubatão de Santos, se faz indispensável fazer-se o mesmo no dessa Vila, pelo que ordeno que compre toda farinha e feijão mandando conduzir para o dito lugar, em alguma casa que exista ou fazer um rancho para acondiciona-la e defender do temporal. E por vossa merce de acordo a esse Povo, para que a primeira ordem acuda todo a referida Serra, onde cada um ao modo, com que os honrados Paulistas tem por tantas vezes dado nos Espanhois, o façam agora...na certeza de que tudo o que apanharem aos inimigos, será para eles...”
Tracado original Mogi-Santos realçado
As cartas seguintes, com intervalo de dois ou três dias, insistem na urgência de construir no alto da Serra do Mar, ranchos “de paos à pique fechado para neles se meter a farinha e feijão que for possível” levando todas as pessoas possíveis sem exceção alguma, nem privilégio, porque em tais ocasiões “nem os Eclesiásticos os tem.”. Em abril reportava que o “Cubatão de Mogy está acabado.”
Nas cartas dirigidas a Mogi que antecederam este episódio é grande a menção e procura de desertores, sendo que a incorporação forçada para expedições militares causava a fuga “para o mato” e talvez explique o recurso usado ao chamar os  “honrados paulistas” ou referir-se a “antigos paulistas destruindo inimigos”, procurando assim, com a invocação da memória de um passado paulista, não mais existente, onde figurava idealizado, o brio, a honra, a coragem e, a partir de uma situação específica, passava-se a construir e sedimentar o apelo à união. A realidade era bem diferente, pois, não eram poucas as vezes, ou casos como o de Luiz Mendes, que talvez ilustre uma situação que não era única, antes, bastante comum em Mogi e outras regiões da capitania: ”vamos a prisão de Luiz Mendes e dos Desertores que o acompanham na vida que levam pelos matos, rebeldes ao Serviço, as Leis, e à Sociedade Humana... convoque ordenanças bastante e auxiliares... e resistindo eles, poderá a mesma tropa segurar lhes com tiros, para virem vivos receber as penas que merecem.”, ou para o juiz ordinário de Mogi “visto os levantados desertores e criminosos terem se aquilombado nesses matos com armas e resolução de resistir... se não quiserem se render se lhes atirem pelas pernas.”. O mesmo juiz ordinário da vila de Mogy das Cruzes recebia novamente ofício com a ordem de prender Luiz Mendes e seguidores, não só por ter tentado atirar duas vezes no capitão do mato que o perseguia mas por ter dito do governador da capitania que gostaria de pegar-lhe a “Cabeça para fazer de Cuia..”, recomendava-se prender os insolentes que infestam esses matos, segurando-se, se resistirem com tiros pelas pernas “porque desejo apanhá-los vivos”, dizia o governador.
Estes habitantes, rebeldes aos ditos reais impostos por Portugal à colônia, incompreendidos em seus quereres e falares (pois muitos, se não todos, sequer falavam a língua portuguesa, mas a Língua Geral, o Nheengatu dos Tupi e de Anchieta), terminaram por fornecer o toque final à composição étnica e cultural do Paulista, o mameluco descendente de índios e portugueses, o antigo Bandeirante, que agora vai se confinando nas matas, vai se "aquilombando", rompendo as ligações com a metrópole e criando suas próprias, mais individualizadas, mais estreitas. Reproduzem a antiga grande família nuclear tupi, com a troca de serviços e obrigações, o mutirão, o compadrio e o cunhadismo, presentes ainda hoje no que se reconhece como bairro, o espaço social por excelência, e depois, muito depois, espaço territorial.
Quanto à questão do abastecimento (farinha e feijão), o episódio gerou uma intensa troca de correspondência entre as capitanias de Minas, São Paulo, e os capitães das vilas no caminho Serra da Mantiqueira – São Paulo, para montar uma rede de transporte para o abastecimento das tropas, devendo os alqueires de farinha serem transportados pelo menos até a vila de Mogi, e daí para São Paulo, como dizia o governador da capitania: ”donde farei transportar em algumas bestas que puder conseguir, e as costas de Índios e escravos.” ou “por rio em canoas.”
Em 1º de outubro de 1777 foi assinado o tratado de Santo Ildefonso, entre Portugal e Espanha, para encerrar a disputa entre ambos. A Espanha coube territórios que hoje fazem parte do Rio Grande do Sul e Uruguai e Portugal teve devolvida a ilha de Santa Catarina que fora ocupada poucos meses antes como vimos.


Alqueire/litro
O alqueire era uma antiga medida de capacidade usado para cereais, mas de volume variável. Na região de Lisboa equivalia a 13,8 litros, no Brasil valia 12,5 litros. Também era a medida de um saco: seis alqueires faziam um saco = 75 litros = 75 quilos

Definições de cubatão
Pequena elevação na base de uma cadeia de montanhas
Habitação rústica tipicamente africana, geralmente de telhado cónico coberto de folhas ou palha, o mesmo que choça.
Do africano kubata = rancho, mais o aumentativo ão = rancho grande

Para saber mais
FERREIRA, Mário Clemente. O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia. Varia hist., Belo Horizonte, v. 23, n. 37, June 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php? Acesso Junho 2012.
HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). História Geral da Civilização Brasileira. A época colonial,  volume I, São Paulo: Difel,1972.
QUEIROZ, Dinah Silveira de. A Muralha. São Paulo: Record, 2000.

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