domingo, 16 de outubro de 2011

O mariscar e a febre no Itapety


Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss ilumina aquilo que irá tornar-se o principal eixo teórico de toda a sua vasta produção científica: a relação natureza e cultura e a subsequente indagação sobre a natureza do Homem, que para o autor só poderá ser convenientemente compreendida quando encontrarmos o caminho de volta à compreensão de como o Homem está relacionado à Natureza.
Formular o objeto da investigação nesses termos implica reconhecer que a vida social, em qualquer agrupamento humano, não é um caos incompreensível, mas se ordena através do costume. Que esses costumes, muitas vezes incompreensíveis para nós, possuem significado para os membros da sociedade em questão. O que caracteriza a "natureza humana" é justamente o grau de ausência de orientações intrínsecas, geneticamente programadas, na modelagem do comportamento.
Despojada dessas orientações, toda ação humana e a própria sobrevivência da espécie ficam condicionadas à constituição de orientações extrínsecas, construídas socialmente através de símbolos. A ideia fundamental é a de que a vida social é ordenada através de símbolos organizados em sistemas. O corolário dessa concepção é a negação de uma base natural (e biológica) para a sociedade.
É justamente na busca pela compreensão do que é ser humano e na identificação dos grandes universais humanos, que Lévi-Strauss desperta nosso interesse sobre a necessidade de melhor mapearmos os mecanismos envolvidos no processo de comunicação e interpretação simbólica, em especial nos sistemas classificatórios que procuram dar conta dos signos produzidos na relação do homem com a natureza. Nesse sentido, parodiando Lévi-Strauss, os animais – e também as plantas, em qualquer ambiente humano, (e muito antes de serem coisas boas ou não para comer), servem como coisas boas para pensar. A cultura portanto, “… não pode ser considerada nem simplesmente justaposta, nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido, substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem.”(1)
Orientados por estes princípios básicos, é que procuramos transcrever este depoimento, que muito além de retratar a memória pessoal, revela parte das relações sociais imbricadas na tecitura da teia social formativa da sociedade mogiana atual e em especial, do ambiente rural nas primeiras décadas do século XX.
O Sr. José Mello, nascido em 4 de Março de 1936, filho de Benedito de Souza Mello e de Paulina Maria de Souza Mello, recorda de seus tempos de criança no bairro do Itapeti onde, por ocasião da Semana Santa (entre os meses de Abril e Maio), abundavam os cardumes do camarão de água doce (Macrobrachium sp), popularmente designado como Pitu. A pesca deste crustáceo era exercida durante todo o ano como complemento alimentar mas, seja pela coincidência do costume católico de não ingerir carne, seja pelo aumento da ocorrência, a captura ampliava-se durante este período.
A coleta é feita com uma peneira entretecida com pequenas fasquias de taquara de lixa ou pinima.(2) Ao trabalho envolvendo a captura, chamam por mariscar. “Por ocasião da Semana Santa, mariscava-se por 10 minutos e a gente recolhia uns 2 quilos de camarão.”
Hoje, o camarão tem uma ocorrência extremamente reduzida na região, provavelmente devido à contaminação dos córregos e ribeirões pelo uso não controlado de defensivos agrícolas. Mas mesmo àquela época de fartura, peixes e camarões começaram a escassear.
O motivo então, devia-se ao fato de os filhos da proprietária da Fazenda Maria Leite, “Nhá Maria”, localizada às margens do rio Lambari, passarem a utilizar a pesca com timbó com muita frequência. Os peixes iam descendo, mortos, pelo Lambari até o (rio) Paratey”.
Mesmo nos períodos de menor abundância, o mariscar era constantemente empregado. Com o camarão, preparavam-se bolinhos com farinha de milho, consumidos assados ou fritos. Mas o mariscar envolve alguns perigos: a gripe e a febre: “Nos meses de Janeiro até Março, a pessoa marisca cedinho, na madrugada, e à noite, no dia seguinte pode ficar doente, com febre. A febre pode matar. Para curar, apenas curador.
Me lembro de Dona Crava (Cravelina Pereira), avó do senhor Angenor Pereira, ardendo de febre, no meio do dia, após mariscar pela manhã. Mandou chamar uma curandeira (de quem não lembro o nome). Morava retirada do bairro, veio a cavalo, ainda com a luz do dia e ordenou pro marido de Dona Crava:
__ Nhô Paulo, vai lá no pasto e procura a Erva de Passarinho(3) no pé da Vassoura Branca (provavelmente Sida sp)!
__ Mas Dona, nunca vi Erva de Passarinho na Vassoura Branca!
__ Vai ali, que Vosmecê encontra.
A erva localizada e retirada da árvore é cozida e ainda quente, administrada. Logo após, a enferma adormece.
“Vai dormir uma hora”. Diz a curandeira. E realmente, uma hora após, Dona Crava acorda chamando por uma das filhas, reclamando de fome, pedindo o que comer. Estava curada!
Sem assistência médica, pública ou privada, semi-isolados, os habitantes do Lambari tratavam as doenças cotidianas com curadores e benzedores, o único socorro. Muitas as doenças pulmonares, a febre amarela, a varicela e o tifo: “A pessoa ia apodrecendo por dentro, fedia”. Como preventivo, chá de marcelinha.(4)
Nos anos 30-40, Miguelzinho, um dos mais reconhecidos curadores da região, tinha por moradia as proximidades da Freguesia da Escada, em Guararema. Negro e cego de um olho, preparava garrafadas. Pela distância e dificuldade de transporte, o enfermo era representado por um emissário – normalmente parente próximo – que narrava ao benzedor os sintomas do doente. A partir desta anamnese cabocla, Miguelzinho preparava a garrafada. Em certas ocasiões, após o preparo, olhava o recipiente contra a luz e já ia avisando: “Pode levar, mas esse aí não tem mais jeito.”. Era comum acontecer, quando do retorno, o emissário encontrar morto o parente...
Mas o que nenhum curador ou benzedor dava jeito mesmo era à febre. Ela vinha entre os meses de janeiro e março. Não era a “febre do macaco”, nem gripe, apenas a febre. Altamente contagiosa, atingia os caboclos sem distinção e com certa preferência aos mais fortes:
No Engenho Beija-Flor, tinha um caboclo que montou moradia recente. Era um caboclo forte, bom de trabalho, que trabalhava 12, 14 horas seguidas. Num final de semana, estava amolando a enxada prá capinar a cana. Na segunda-feira, após o trabalho, deitou-se com febre. Na terça-feira estava morto.
Também o ajudante de meu pai morreu assim, em um dia.

O último recurso, era a “dosa acônica” - acônico(5) + beladona(6). A “dosa”, pela toxidade das substâncias empregadas no composto, era administrada em pequenas gotas, diluída em água. Para isso, utilizavam de um pequeno dosador, um pequeno bastão de vidro maciço em forma de L, que mergulhado no recipiente, retinha pequena parte do preparado, extremamente viscoso. Curava a gripe, mas não a febre.
A febre provocava tremores de frio e suadouros. “Mexia com a ideia da pessoa. A pessoa ficava andando pela casa, a esmo, agitada. Depois morria.”
Não só da febre morria-se no Itapety. A varicela também grassava: “o corpo todo pipocado, em carne viva” e também, a “bexiga preta”:
Perto de Jacareí, muita gente morria com a bexiga. Passava um carroção pelo bairro levando os corpos. As pessoas se escondiam do piloto e do ajudante, mato a dentro, com medo do contágio.
Uma vez, levaram um farmacêutico, a cavalo, prá prestar socorro. Um casal morreu, horas seguidas, um após o outro. Nas vizinhanças, morria o cunhado.
Meu pai, Benedito de Souza Mello, era capelão da Capela do Santo Alberto e benzedor bastante conhecido aqui no bairro do Itapeti. Era o responsável por preparar os enterros.
Os médicos da cidade (Mogi das Cruzes), por total falta de recursos, não conseguiam realizar as vistorias sanitárias necessárias, e quando um doente morria, meu pai se encarregava de conseguir o atestado de óbito junto aos médicos.
Àquela época, tinha o Dr. Rosa(7), o Dr. Deodato Wertheimer e o Dr. Lamartine. Ir até Mogi das Cruzes, representava 3 horas a cavalo, ou 4 horas no lombo de mula ou burro. O Dr. Lamartine era o mais complicado, pois fazia questão de visitar o falecido prá expedir o atestado. Já com o Dr. Rosa, era mais simples, pois ele conhecia bem meu pai e também porque gostava de “chutar” (beber).
Meu pai o procurava, primeiro pelos bares, quase nunca no consultório, e no bar, o Dr. Rosa perguntava:
__ Oi Mello! Morreu gente por lá, não foi?
Caminhava com papai, do bar ao consultório e lá arrematava:
__ E o tipo da doença?
__ Febre, seu Doutor.
E daí, encaminhava o atestado de óbito, sem nada cobrar …


Notas

(1) LEACH, R. As idéias de Lévi-Strauss. São Paulo: Cultrix, 1970 :40-48.
(2) O Sr. José Mello e seu irmão, Joaquim de Souza Mello, insistem em fazer uma distinção entre peneira e apá. Não só conhecem a atribuição tupi mas a diferenciam funcionalmente: na peneira, o entretecido é maior, de forma a permitir o escoamento rápido da água, já no apá, as malhas encontram-se unidas, fechadas. A apá é utilizada para “abanar” o arroz, separando os grãos previamente pilados da casca,
(3) Erva-de-passarinho, Struthantus flexicaulis. O suco das folhas frescas, é recomendado para bronquites, pneumonia, pleurisias, hemoptises, dores no peito, pontadas e outras afecções respiratórias. O decocto, para doenças do útero e hemorragias. (BARBOSA, Edglay Lima. Arte e Ciência. 05 Fev 2008. Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/erva-de-passarinho-proliferacao-ou-erradicacao/4029/).
(4) A marcelinha, marcela ou marcela-do-campo (Achyrocline sp), possui origem na região sul e sudoeste do Brasil, dotada com as seguintes propriedades terapeuticas: Antiinflamatório, antiespasmódico (reduz contrações musculares involuntárias) e analgésico, sedativa e emenagoga. Disponível em CULTIVANDO. http://www.cultivando.com.br/plantas_medicinais_detalhes/marcela_do_campo.html).
(5) Aconitum napellus. Trata-se de um veneno de ação potente e rápida. Seu uso deve ser realizado em doses homeopáticas. É indicado em casos de asma, bronquite, congestão pulmonar, coriza, doença inflamatória, febre com delírios, feridas na pele, gota, gripe, hipertrofia do coração, laringite aguda, nevralgia facial, nevralgia lombociática e do trigênio, palpitação nervosa, pneumonia, reumatismo, tosse espasmódica e úlceras (PLANTAMED. Aconitum napellus L – Acônito. Disponível em http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Aconitum_napellus.htm).
(6) Planta de extrema toxicidade em todas as suas partes, a beladona (Atropa belladona), rica em atropina e escopolamina, possui efeitos terapêuticos utilizados no tratamento da bradicardia sinusal, na dilatação pupilar no Parkinsonismo, na prevenção de cinetose, como pré-medicação anestésica para ressecar secreções e em doenças espásticas do trato biliar, cólico-ureteral e renal, entre outras indicações (ERVAS e Insumos. Disponível em http://ervaseinsumos.blogspot.com/2009/03/beladona.html).
(7) Dr. Luiz de Azevedo Rosa.

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