terça-feira, 22 de maio de 2012

Caminhos Antigos IV

Doações de Fé, O Livro de Ouro do Divino Espírito Santo, 1936


O Livro de Ouro da festa do divino é um documento que revela a extensão e participação da população no andamento da festa, desde o ano anterior quando começavam os preparativos. Ato coletivo que pela extensão e valor total das doações não se resume nas pessoas mais conhecidas e com dinheiro, antes, o que vemos é uma participação extensa que talvez possa ser resumida no doador que se identifica e assina como um devoto ou nos doadores anônimos das listas que circulavam e são agregadas ao livro de ouro.  
Os trabalhos começavam, com a confecção do livro que era costurado com acabamento francês (brochura), em gráfica na rua Barão de Jaceguai n°21.A capa almofadada, vermelha com detalhes ornamentais e letras grafadas em dourado compunham o Livro de Ouro Pró Festas do Divino Espírito Santo.Abaixo do título as informações : Mogy das Cruzes, anno 1936Festeiros: Francisco Ferreira Lopes, Jardelina Almeida Lopes para o ano em questão.A série Caminhos Antigos fotografou e reproduz a capa do livro de 1936, graças a uma gentileza do neto de Francisco Ferreira Lopes, Francisco José Witzel.
Com o livro pronto havia diversas maneiras de recolher donativos para a festa. Inicialmente as paginas eram divididas em valores fixos doados e dentro desta categoria existia pouco mais de 400 pessoas doadoras, os valores indo do maior para o menor, sendo o maior 500$000 e depois 200$000, 100$000, 50$000, 30$000, 27$000, 20$000, 10$000 e 7$000. Para se ter uma idéia mais concreta dos valores e poder de compra do dinheiro na época, 1$000 compravam 10 exemplares de jornal, o salário mínimo que foi instituído em 1936, regulamentado em 1938, efetivamente passou a vigorar em 1940, valia 240$000 para manter uma família de quatro pessoas durante um mês.
Depois desta seção de valores fixos, havia outra com o título “Donativos para a festa do Divino Espírito Santo”, onde muitas pessoas ficavam encarregadas de passar listas angariando pequenos donativos pela cidade e nos distritos como Sabaúna e Taiaçupeba, chegando os valores finais destas listas a girar em torno de 20$000 a 40$000 e algumas 90$000, outras realizavam doações em mercadorias e havia ainda os estabelecimentos comerciais e industriais como Serraria Sant’anna, Sociedade Industrial, Fabrica de Louça, Fabrica de Vinho, Agencia Ford, Agencia Chevrolet e as contribuições coletivas de trabalhadores como os operários da Companhia Mechanica, funcionários da Linha da Estrada Central entre Jacarey e Norte, funcionários da Câmara Municipal e outros.
Bailes, matines e quermesses eram realizados com renda total de quase dois contos de réis para os bailes e variada para a quermesse onde havia a barraca portuguesa, holandesa, japonesa, barraca portuguesa seção vinhos, leilão, rifa, e barraca maça

Adereços usados na festa                                Festa 1936
Quando o campo faz a festa na cidade

Na área central da cidade, quando ocorriam as festas de devoção como São Benedito, Divino Espírito Santo e outras, na verdade, estes cantos e danças vinham da área rural de Mogi das Cruzes.
É Mário de Andrade, o criador da poesia moderna brasileira que diz: (...) já me acostumei a reconhecer que justamente os arredores da Capital são verdadeiros mananciais de surpresas folclóricas. (...) a nossa lustrosa capital é toda orlada assim dum caipirismo (...), que nos transporta (...) a um passado antiqüíssimo em que ainda revivem as danças indígenas e a conversão delas ao catolicismo pela mão adestrada dos Jesuítas.2
Junto de Mário de Andrade, o maior antropólogo do século XX, Claude Lévi-Strauss esteve em Mogi das Cruzes em 1936 com sua esposa Dina Lévi-Strauss, para filmar a Festa do Divino. Diz Lévi-Strauss: “Ele (Mario) nos iniciou nas tradições populares e indígenas e, juntos, viajamos até Mogi das Cruzes.”3 Para entender como Mário de Andrade e o casal Lévi-Strauss tiveram como pouso Mogi das Cruzes, vamos traçar uma pequena trajetória de nossos personagens antes de sua estadia na cidade.
Mário de Andrade, ainda nos anos 20, iniciou uma atividade que continuaria pelo resto de sua vida: um trabalho meticuloso de documentação envolvendo história, cultura e essencialmente a música popular do interior do Brasil, principalmente de São Paulo e Nordeste.
Viajante incansável e observador atento, após o Curso de Etnografia ministrado por Dina Lévi-Strauss, cria a Sociedade de Etnografia e Folclore em 1936, com o intuito de "[...] promover e divulgar estudos etnográficos, antropológicos e folclóricos."4 vinculada ao Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Necessário dizer que o o Departamento de Cultura foi dirigido por Mário de Andrade entre 1935 a 1938.
É um período singular na história da formação da inteligência brasileira, coincidindo com a criação da Universidade de São Paulo e da Escola Livre de Sociologia e Política Assim, a recém criada Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), reunia entre seus sócios fundadores, nomes como os de Mario de Andrade, Claude Levi-Strauss, sua esposa Dina Strauss, a etnomusicóloga Oneida Alvarenga e Plínio Ayrosa entre outros.
É neste fervilhante ambiente intelectual que em 1936 Mario de Andrade chegou a Mogi das Cruzes acompanhado do casal Levi Straus para documentar a Festa do Divino e no seu artigo para a Revista do Arquivo sobre a “Entrada dos Palmitos”5 ele se referia “as filmagens que o Departamento de Cultura realizaria no dia seguinte”.
Os filmes a que Mário se refereria são: “Festejos populares em Mogi das Cruzes – Cavalhada”, “Moçambique – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, “Festa do Divino Espírito Santo” e “Congada – Festa do Divino em Mogi das Cruzes”, os dois últimos assinados pelo casal Lévi-Strauss.
A presença do casal não é mera coincidência e sim fruto dos esforços de Mário de Andrade para a criação da Sociedade de Etnografia e Folclore. A SEF necessitava de uma base teórica que justificasse seus projetos futuros, Dina a sedimentou com o Curso de Etnografia, estruturado em 23 aulas abordando aspectos técnicos para a observação, pesquisa e coleta de materiais etnográficos e culturais (que hoje poderiam se traduzir por aspectos materiais e imateriais da cultura).
Dina Lévi-Strauss comentou em sua aula sobre “a dança e o drama” que “[...] A representação dramática é particularmente observável nas festas regionais. Nestas ocasiões – como por exemplo observou-se recentemente em Mogi das Cruzes – formam-se às vezes verdadeiras companhias temporárias de atores [...]”6.
Como um dos maiores modernistas, Mario de Andrade sabia da importância de documentar as manifestações populares, frente a uma modernidade e uma noção de progresso que ameaçava o “antigo”. Hoje esses registros são importantes para compreender a festa, “vivendo para quem quiser estudar”, como queria Mário de Andrade.
Um ano após estas filmagens, a Sociedade de Etnografia e Folclore, propôs o mapeamento folclórico e cultural do Estado de São Paulo, fundamentado nas correntes antropológicas disponíveis à época e principalmente na metodologia desenvolvida durante o Curso de Etnografia de Dina Lévi-Strauss.
Mogi das Cruzes não poderia estar ausente desta empreitada, então, Mário de Andrade remeteu a vinte destinatários, entre eles Leonor de Oliveira e Gabriel Pereira, um levantamento sobre as principais ocorrências folclóricas no Alto Tietê, criando uma tipologia para danças, alimentação, benzimentos e simpatias.
O inquérito impressiona por suas dimensões, vejamos por exemplo,  o que recomendava para o registro das danças dramáticas como a Congada, Cavalhada, etc.
As observações essenciais no estudo do drama são as seguintes:
1) Lugar, data e ocasião da festa e qual o motivo da escolha desse lugar, data e ocasião.
2) Tudo quanto se refira aos atores: quem são, qual sua posição social, quem é o organizador ou proprietário da festa.
3) O assunto da representação.
4) Quais as disposições tomadas para realização da festa, tanto em relação aos executantes como os assistentes.
5) Descrever e recolher os vestuarios, mascaras, disfarces, emfim todos os accessorios de encenação.7
No tocante à itens da cultura material, em sua aula 14 (Cultura Material), Dina cita diretamente alguns procedimentos indicador por Marcel Mauss, para a coleta:
“Mauss diz que é preciso recolher tudo, pois que tudo é interessante. Uma coleção etnografica não é uma coleção de obras de arte; mas representa uma cultura e seu interesse consiste nisto, somente nisto. Sobretudo o preconceito de pureza de estilo precisa ser posto de lado. Do ponto de vista etnográfico, não há pureza de estilo, mas sempre mistura, influência, contato de culturas.”8
Muito embora a SEF tenha encerrado suas atividades de forma prematura, dois anos após sua fundação, Mário de Andrade continuou seus levantamentos e o registro etnomusicológico por todo o Brasil.
Experiências recentes neste território contemplam muitas vezes uma releitura do trabalho de Mário. É o caso por exemplo do excelente percurso de coleta, registro e de divulgação de informação etnomusicológica levada a efeito pelo grupo A Barca9 ao refazer parte do percurso de Mário contido em seu Turista Aprendiz. Experiência semelhante é possível, senão obrigatória no Alto Tietê: refazer os inquéritos folclóricos para preservar o que ainda persiste e registrar o que está por desaparecer.

                   Registro de 1936: preparação da cavalhada no Largo Bom Jesus, ao fundo a casa de Antenor de Souza Mello

Fontes:

1LÉVI-STRAUS, C. Tristes Trópicos.  Paris: Plan, 1955, p. 55-56.
2ANDRADE, M. de. Revista do Arquivo Municipal n. XXXIV, Fev., 1937, p. 203-204.
3LÉVI-STRAUSS, C. Entrevista ao O Estado de São Paulo, 1997. Disponível em http://daedalus-pt.blogspot.com/2003/09/ainda-lvi-strauss.html.
4SHIMABUKURO, E.H.; BOTANI, A.S.L.; AZEVEDO, J.E. Centro Cultural São Paulo, 2012, p.5
5ANDRADE, Mario. A entrada dos palmitos. Revista do Arquivo Municipal. V. XXXII. Departamento de Cultura, São Paulo, 1937, p. 51-64.
6 CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. Catálago da Sociedade de Etnografia e Folclore. Apostila do Curso de Etnografia, 11a aula: A dança e o drama, [Dina Lévi- Strauss]. 3p. mimeo.Cx.1, doc.12.
7Ibid. 28 de Maio de 1938. Transcrito por Mário de andrade.
8CENTRO CULTURAL SÃO PAULO. Catálago da Sociedade de Etnografia e Folclore. Apostila do Curso de Etnografia, 14a aula: Cultura Material, [Dina Lévi- Strauss]. 3p. mimeo.Cx.1, doc.12.
9 Chico Saraiva. Disponível em http://www.chicosaraiva.com.br/a-barca.
Fontes das fotos: Livro de ouro, acervo Sr Witzel; Festa 1936, J.B.Camargo-IEB fundo Mário de Andrade. 

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