domingo, 10 de novembro de 2013




Nos rastros do lixo: a cidade de Mogi das Cruzes e os restos


Em nosso dia a dia as pessoas estão acostumadas de tal maneira com o ato de descartar, que não se dão conta de produzir enorme quantidade de restos, desde embalagens plásticas e plásticos de toda natureza, papel, metais, vidros e até mesmo alimentos. O modo de produzir as coisas gera cada vez mais desejos por coisas novas e por sua vez mais restos são produzidos e descartados. Somando-se a isto temos os despejos da construção civil, dejetos industriais e hospitalares que necessitam um lugar apropriado para ser armazenado.

O destino final dos restos é o grande problema que atinge a todos, mas por outro lado, tornou-se também algo extremamente rentável, de grande interesse para empresas empenhadas na construção de um destino final, seja um aterro sanitário ou usina para processamento. Deste modo, ao que chamamos por lixo, transforma-se em alvo de disputas – por vezes violentas - para apropriação daquilo que ninguém quer.

Entender o caminho trilhado pelo lixo, desde o século XIX como problema urbano e de saúde pública, até a sua transformação em questão ambiental e mercadoria hoje em dia, indica a possibilidade de traçar uma história do lixo, tema não menos importante para a história.

O lixo da cidade nas posturas municipais do século XIX

Postura Municipal
Pensando numa história do lixo, as posturas municipais são documentos importantes para conhecermos, em meados do século XIX, a existência de normas relativas à presença das “imundícies” ou lixo dentro da cidade. Em Mogi das Cruzes a postura municipal de 1856 explicitamente tratava do lixo em seu art. 1º na seção de higiene pública: “Os proprietários residentes nesta cidade serão obrigados a conservar suas casas limpas e arejadas e suas frentes varridas até o meio da rua duas vezes por semana, e o lixo será amontoado na rua e daí será lançado fora da povoação a custa da Câmara...”.

A preocupação com a coleta vinha acompanhada de medidas que buscavam sanear e ordenar a cidade em função de epidemias como a varíola, atingindo os espaços públicos, onde era proibido a criação de animais nas ruas e os espaços privados, como quintais e casas, que deveriam ser fiscalizados quanto as mesmas criações de animais, como expresso na postura de 1856: “Dentro desta cidade só em quintais muito espaçosos será permitido a criação de porcos soltos ou em chiqueiro com a maior limpeza possível, esta concessão será suspensa desde o momento em que se verifique a existência de epidemia reinante em algum ponto desta província.”. Estes artigos eram acompanhados de penalidades ao infrator, que podiam variar de multa até dias de prisão. Tratava-se portanto, de vigiar e punir, como relata a historiadora Rosana Miziara, “a necessidade de limpeza das ruas apoiava-se mais em valores morais e intenções punitivas do que em um ideário sanitário. Quem realizava esse trabalho de recolhimento das sujeiras eram os considerados excluídos da sociedade: negros e mulatas forras.”

Mas o que exatamente era lixo e onde era depositado? As mesmas posturas municipais lançam pistas, ao indicar que a varrição na frente das casas era composta de ciscos e excremento de animais e nas ruas, beco, praças, proibido jogar entulhos como vidros, ferro, ossos ou algo mais que pudessem ferir os passantes.

Os animais mortos deveriam ser enterrados a certa distancia do núcleo urbano e de nenhuma maneira lançados em riachos, as “águas estagnadas e lixos” eram preocupação constante, tanto as águas paradas da rua como córregos e riachos de servidão pública, que deveriam ser cuidados e desimpedidos pelos proprietários dos terrenos por onde passassem. Já a carne vinda do matadouro para os açougues deveria ser transportada “coberta com panos limpos”.

Código Sanitario
No fim do século XIX em 1894 o Código Sanitário do Estado de São Paulo era promulgado tendo em seu conteúdo 520 artigos, sendo, portanto mais específico que as Posturas Municipais na normatização da vida e no afastamento do indesejado, como os cemitérios, matadouros e dejetos, como mostram os seguintes artigos relativos ao lixo: art.22 “o lixo e a lama recolhidos nas ruas e praças deverão ser transportados em carroças fechadas de tipos os mais aperfeiçoados, e depositados em ponto afastado dos centros populosos e ali incinerados.” Art.23 “todos os resíduos deverão indistintamente passar pelo incinerador”.

O século XX: a caminho do negocio e lucratividade do lixo

Nas décadas iniciais do século XX, queimar o lixo era a solução encontrada, mas com o crescimento das cidades e principalmente com uma maior quantidade de coisas fabricadas e oferecidas para o consumo diário da população, a quantidade de resíduos sólidos passou a ser um problema que cada vez mais exigia uma solução técnica.

Na Europa, uma das técnicas estudada era a degradação biológica de matéria orgânica, fenômeno que ocorreu sempre na natureza. Foi a observação deste processo natural de decomposição da matéria orgânica que levou o homem a tentar reproduzi-lo visando o melhoramento de solos pobres ou intensamente utilizados, através de uma técnica denominada compostagem.

Nos anos 20 e 30, varias experiências em larga escala são realizadas com estudos em laboratório utilizando na compostagem, resíduos vegetais e estrume de estábulos, resultando estes esforços num conjunto diversificado de patentes a partir dos 1920.

Destes processos os mais importantes são os seguintes: O processo Becari (1922), patenteado na Itália; O sistema Itano (1928) que consiste num processo mecânico; O sistema Bordas (1931) que consiste num melhoramento do processo Becari e cuja principal diferença está na realização da fermentação; O sistema Dano (1933), desenvolvido na Dinamarca, inicialmente como um processo destinado a preparar os resíduos sólidos urbanos para a compostagem através de processos tradicionais e o método Earp-Thomas (1933).

É justamente o sistema Dano, que por preparar resíduos sólidos, mostrava um grande potencial para tratar o lixo urbano e desta maneira chamava a atenção de cidades, como Mogi das Cruzes, que tinham no lixo um problema urbano, dentre outros.

1957:Mogi e a usina dinamarquesa

O ano de 1957 terminava e havia o testemunho que um disco voador tinha pousado em Mogi lá pelo lado das 3 cruzes (atual Jardim Camila), mas, a cidade enfrentava outros problemas bem mais terrenos e concretos.

O jornal o “Diário de Mogi” noticiava os problemas da cidade neste ano de 1957 que findava: o trânsito, acentuando “um clima de desordem e confusão”; a falta de arborização na cidade, cobrando “o incremento do plantio de árvores” e o lixo com uma “limpeza pública deficiente... lixo acumulado”.

Diário de Mogi 1957
Se a coleta dos restos era deficiente, uma solução era apresentada na destinação final do lixo, ou seja, uma usina que utilizava o sistema dinamarquês Dano na produção de composto orgânico.

Tratado como prioritário na questão do lixo, a usina e seu maquinário era descrito juntamente com o método. A transformação do lixo em adubo seguia três etapas: primeiro um eletro-imã cuidava de separar metais, latas, etc. caindo a seguir o lixo numa correia transportadora para levar ao silo de fermentação. Neste silo de fermentação, seguia por 3 a 5 dias numa temperatura de 60º graus, que acreditava-se ser suficiente para eliminar os germes e terminando o processo, o material grosseiro como pedras, vidro, porcelana, metais não ferrosos, era separado em peneiras vibratórias.

O objetivo final com a utilização do processo Dano era produzir adubo, o que numa cidade agrícola como Mogi era o grande atrativo, sendo que, o engenheiro responsável destacava a ausência de cheiro na usina e no material final que pasteurizado, permitia sua utilização sem o perigo de contágio com doenças infecciosas.

A usina não chegou a Mogi, no entanto, o sistema Dano de compostagem, entre outros, foi largamente utilizado no Brasil, com instalações em grandes cidades, gerando procura pelo composto por parte de agricultores de grandes cultivos como as fazendas de café do Paraná e Minas Gerais.

De 1957 até hoje, a solução adotada continuou sendo afastar o lixo do olhar e consumir sem culpa ou como diz o antropólogo Everardo Rocha, “fazendo do consumo um projeto de vida” numa sociedade que julga cidadão aquele que consome, aquele que tem e possui coisas, que descartadas viram lixo.

Fontes:
Arquivo “O Diário de Mogi”:dezembro de 1957, várias edições
ALESP: Posturas Municipais da cidade de Mogi das Cruzes 1856, 1857
APESP: Código sanitário do Estado de São Paulo, 1894

Para saber mais:

POSTURAS MUNICIPAIS: compreende uma série de artigos e normas que regulavam o comportamento dos munícipes, desde suas relações de vizinhança, coerção de escravos, impostos municipais, punições por multa e/ou prisão. Se constitui em importante fonte historiográfica para compreensão da cidade.

MIZIARA, Rosana. Nos rastros dos restos: as trajetórias do lixo na cidade de São Paulo. São Paulo: Educ, 2001.


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