sábado, 23 de junho de 2012

Caminhos Antigos VI

Entrada do canal de Bertioga e os prédios da Armação das Baleias.
Caminhos da Bertioga: da lamparina movida a óleo de baleia até a energia elétrica.
Atividade conhecida e praticada em Portugal, por exemplo nos Açores do século XVI, a pesca da baleia encontrou, em parte do litoral do Brasil, um local para a instalação das armações baleeiras, “industria” de pesca, de extração de óleo, utilizados como lubrificante, sabão, cera de velas, óleo para iluminação, sendo utilizado na iluminação pública em oratórios nas esquinas de cidades como o Rio de Janeiro colonial e processamento de muitos outros produtos vindos das baleias. 
 
Ao contrario do que muita gente pensa, a História do Brasil Colonial não se resume só a senhores de engenho e cana-de-açúcar da distante região Nordeste ou o ouro das Minas Gerais, antes, a terra que se oferecia para a exploração era desconhecida e as certezas de um empreendimento que apresentasse lucro para Portugal caminhava ao lado das incertezas e dúvidas de um lugar desconhecido, onde o fantástico fazia parte da explicação do mundo real, como na narração de Frei Vicente do Salvador em 1627 que descrevia o novo mundo : Há muitas mui grandes baleias, que no meio do inverno vem a parir nas baías, e rios fundos desta costa (…) Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora da água após os índios, e nela hão morto alguns, que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece, que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços, e toda a carne.”

Ainda é Frei Vicente que traduz a violência da pesca com imagens fortes como “sangue cobre o sol, nuvem vermelha e mar vermelho”, quando conta detalhada descrição da pesca na Bahia, no início dos anos 1600 :“o padre revestido benze as lanchas, e todos os instrumentos, que nesta pescaria servem, e com isto se vão em busca das baleias, e a primeira coisa que fazem é arpoar o filho, a que chamam baleato, o qual anda sempre em cima da água brincando, dando saltos como golfinhos, e assim com facilidade o arpoam com um arpéu de esgalhos posto em uma haste, como de um dardo, e em o ferindo e prendendo com os galhos puxam por ele com a corda do arpéu, e o amarram, e atracam em uma das lanchas, que são três as que andam neste ministério, e logo da outra arpoam a mãe, que não se aparta do filho, e como a baleia não tem ossos mais que no espinhaço, e o arpão é pesado, e despedido de bom braço, entra-lhe até o meio da haste, sentindo-se ela ferida corre, e foge uma légua, às vezes mais, por cima da água, e o arpoador lhe larga a corda, e a vai seguindo até que canse, e cheguem as duas lanchas, que chegadas se tornam todas três a pôr em esquadrão, ficando a que traz o baleato no meio, o qual a mãe sentindo se vem para ele, e neste tempo da outra lancha outro arpoador lhe despede com a mesma força o arpão, e ela dá outra corrida como a primeira, da qual fica já tão cansada, que de todas as três lanchas a lanceiam com lanças de ferros agudos a modo de meias-luas, e a ferem de maneira que dá muitos bramidos com a dor, e quando morre bota pelas ventas tanta quantidade de sangue para o ar, que cobre o sol, e faz uma nuvem vermelha, com que fica o mar vermelho, e este é o sinal que acabou, e morreu, logo com muita presteza se lançam ao mar cinco homens com cordas de linho grossas, e a atracam, e amarram a uma lancha...”
Neste mundo, apesar dos perigos imaginários dos “homens marinhos” e outros mais reais da atividade de colonização, estabeleceu-se neste início de século XVII o monopólio real de pesca da baleia e arrendamento do direito de pesca para particulares sob a forma de contrato e desta maneira parte do litoral brasileiro apresentou a ocupação com a armação de baleias nas capitanias do Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, nesta ultima na ilha de São Sebastião, Santos e Bertioga.
A armação das baleias de Bertioga foi erguida junto ao Forte São Felipe, na Ilha de Santo Amaro, hoje no território do Guarujá, ficando na trilha que parte da área de desembarque da balsa quando hoje se cruza o canal no sentido Bertioga – Guarujá.
No século XVIII a armação das baleias de Bertioga assim como outras no litoral também serviu para a defesa dos domínios portugueses como podemos ver na instrução militar de 14 de janeiro de 1775, para o Governador da Capitania de São Paulo, onde este deveria informar-se do número e qualidade de embarcações utilizados na pesca pelos contratadores de baleias de Santos, Bertioga e Santa Catarina, devendo aprontar as embarcações assim que fosse requisitado, “não só porque o mesmo contrato é o que tem maior interesse na preservação e defensa dos domínios meridionais do Brasil, porque sem elles não pode a pesca das baleas subsistir de alguma sorte naqueles ferteis e abundantes sítios; mas porque o dito incômodo e prejuizo, sendo de particulares, não devem ser atendidos, quando se trata de causa pública.”
Segundo a historiadora Miryam Ellis o estabelecimento de Bertioga contava em 1789 com uma capela, um sobrado, armazém, casa dos tanques de azeite, o engenho, três casas para amarras e lanchas, casa dos feitores, casa dos baleeiros, trinta senzalas para escravos, fonte de água, cais de pedra, casas dos baleeiros da barra, caldeiras e instrumentos de pescas, ferragens de variado uso, objetos de bronze, ferramentas de carpinteiro, tanoeiro que fabricava barris ou tonéis para embalar, conservar e transportar mercadorias, ferramentas do calafate que era o artesão especializado em vedar ou calafetar as juntas entre as tábuas de que era feita os barcos, três saveiros, quatro lanchas, duas canoas grandes, onze pequenas e sessenta e três escravos.
Pelos itens constantes no inventário de 1789 podemos ter ideia de como era realizado o trabalho na armação, a pesca, extração e produção de óleo e outros produtos.
As embarcações eram guardadas em construções próprias e descendo pelo cais de pedra a pesca era realizada por baleeiros assalariados que incluía um arpoador, remadores, um homem para cuidar do leme e mesmo por pequenos agricultores da região, sendo que as vezes, segundo Miryam Ellis, eram coagidos a força devido o perigo da pesca, pois, não era raro a morte na tripulação do barco que em geral ficava três meses arpoando. Utilizavam os saveiros e lanchas, servindo os barcos menores como apoio ou para arpoar baleias mais perto da costa e dependendo do estado das embarcações entraria os serviços do carpinteiro ou do calafate, responsável pela impermeabilização e calafetação das juntas dos barcos para a perfeita navegação.
Arpoada, a baleia era arrastada até a praia da armação e ali começavam os trabalhos de extração, a gordura retirada e levada ao engenho e derretida em tanques. Os escravos trabalhavam no engenho, nos tanques de azeite, na extração das barbatanas e cerdas. Os serviços do tanoeiro eram utilizados na confecção de pipas para armazenar e transportar o óleo conseguido que girava em torno de 12 a 20 pipas por baleia (se utilizarmos a pipa da região do Douro em Portugal como unidade de medida, temos 1 pipa = 550 litros ).
Morando na armação, responsável pela condução dos trabalhos desde a pesca até o processamento do óleo, ficavam os feitores, que para José Bonifácio de Andrada e Silva eram estúpidos, autoritários, pretensiosos e “inteiramente ignorantes na arte de pescar baleias” por insistirem em arpoar filhotes de baleia, (os baleotes de mama) e as mães. Estes homens conduziam “a perniciosa pratica de matarem os baleotes de mama para assim arpoarem as mães com maior facilidade. Tem estas tanto amor a seus filhinhos, que quase os trazem entre as barbatanas para lhes darem leite e se por ventura lhes matam, não desemparam o lugar, sem deixar igualmente a vida na ponta dos arpões:é seu amor tamanho, que podendo demorar-se no fundo da água por mais de meia hora sem vir respirar acima e escapar assim ao perigo, que as ameaça, folgam antes expor a vida para salvarem a dos filhinhos, que não podem estar sem respirar por tanto tempo. Esta ternura das mães facilita a pesca (…) mas trara a ruína total de tão importante pescaria.”
Além do óleo que abastecia o mercado interno para a iluminação, o azeite e a barba de baleia figuravam na lista de produtos exportados em 1777 e segundo o professor Carlos Cordeiro da Universidade dos Açores (Portugal), especialista em questões comerciais entre Açores e Brasil, estes produtos também lá chegavam e faziam parte do quotidiano açoriano.
Entre 1812 e 1819 os viajantes ingleses John Mawe e Robert Southey passaram por Bertioga observando e relatando o que viam. Southey teceu um breve comentário, restrito a “onde os baleeiros tem um estabelecimento”, porém as descrições de John Mawe são mais apuradas, como as de um viajante-reporter, que nos leva a conhecer o lugar: “...resolvemos não aguardar navio em Santos, mas seguir para o Rio de Janeiro numa canoa, margeando a costa. Alugada uma, embarcamos, depois de remarmos toda a noite, num estreito que separa a Ilha de Santo Amaro, que constitui uma das passagens para Santos, por mar, chegamos, ao nascer do sol, a Bertioga, situada no extremo norte daquela ilha. É pequena a cidade, com algumas construções toleráveis e boas, erguida por conveniência do Capitão-mor e seus ajudantes, que superintendiam um estabelecimento de pesca, similar ao de Santa Catarina, pertencente a mesma companhia, mas muito inferior em tamanho e capacidade. Em ambos, os negros mais hábeis ocupavam-se no preparo de barbatanas de baleia, produto de considerável comércio, …, apanham-se, anualmente, grande número de baleias. Os edifícios para derreter a gordura e armazenar o óleo estão convenientemente instalados.”
Apesar da armação continuar em funcionamento, a verdade é que os contratos haviam sido extintos em 1801 por alvará real e a pesca entrado em decadência. Podemos ler nos relatos de John Mawe que uma mesma companhia atuava tanto em Bertioga como em outros lugares, mas, neste mesmo século XIX a pesca indiscriminada e predatória da baleia levou a decadência das armações, estagnação da vila e um mergulho no isolamento.
A vila de pescadores, no entanto, sobrevivia com a pesca farta de outros tipos de peixe, por exemplo, a tainha, a cultura de frutas, um pequeno comércio se instalara e abastecia o lugar que no início do século XX viu a inauguração em seu território da usina hidroelétrica de Itatinga, em 1910, para gerar energia para o porto de Santos, porém, continuando a vila sem eletricidade, tendo a luz dos pequenos lampiões a querosene por iluminação.
Nos anos 30 a vila é redescoberta e sua importância histórica ressaltada por Mário de Andrade que viajara para justamente conhecer os marcos históricos e dizia:”As duas pensões não tinham mais quartos, com veranistas. Afinal fomos dormir numa casa de taipa dum tabaréu que nem iluminação de vela tinha ...”
A energia elétrica chegou em meados da década de 60 com a expansão dos loteamentos e parcelamento do solo e de lá até hoje muita coisa mudou e a cidade convive com uma ocupação indiscriminada e predatória. Sem uma normatização adequada que regulamente essa ocupação, ação do poder público para conter a especulação e conservar o patrimônio cultural de Bertioga, corre-se o risco de repetir o caso e ocaso da armação das baleias.


Fonte das imagens
Mapa da fortaleza de Bertioga que D Luis mandou fazer 1775    Biblioteca Nacional
Walfang_zwischen_1856_und_1907
Whale Fishing Fac simile of a Woodcut in the Cosmographie Universelle of Thevet in folio Paris 1574
James Cook-whaling

Para saber mais:
Os livros 1 e 2 podem ser encontrados no Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes
1) ELLIS, Myriam. Aspectos da pesca da baleia no Brasil colonial II. Revista de História. São Paulo, v. XVI, n.º 33, p 149-175, jan, 1958a.
  1. ELLIS, Myriam. Aspectos da pesca da baleia no Brasil colonial III. Revista de História. São Paulo, v. XVI, n.º 34, p. 379-424 , abril, 1958b.
  2. ELLIS, Myriam. A Baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1969
  3. MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. B.H./S.P. Editora Itatiaia/EDUSP, 1978, pag.75

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