sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Caminhos Antigos XXVII


As gratas memórias de Dona Nena

Numa manhã de domingo, no final de outubro de 2013, durante encontro de autos antigos em Sabaúna, distrito de Mogi das Cruzes, uma senhora a porta de sua casa, em frente à estação ferroviária, olhava o movimento e falava: ”Está bonito”.

Dona Nena, que nasceu em Sabaúna em 13 de outubro de 1919, 94 anos, vivenciou ao longo de seus quase cem anos de vida, a essência do lugar.

Atuou durante anos como telefonista, lugar privilegiado para conhecer a vida de negócios que girava em torno da lavoura e do comercio, pois dela dependia a comunicação quando caminhava nas estradas de terra para dar recados aos que faziam negócios com as praças de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Viu o núcleo colonial, que fora constituído no final do século XIX, abrigar no século XX uma lavoura diversificada traduzida no movimento dos carros de boi com jacás(1), repolho, pêra e pimentão, e também o aparecimento de algumas fábricas como a de pólvora, mais tarde, o lanifício e atualmente a fábrica de materiais elétricos.
jacás

Suas lembranças começam com o pai que veio de Portugal, a mãe da Itália. Com apenas um ano e meio de idade perdeu seu pai, em acidente na pedreira de Sabaúna, quando num feriado foi chamado para trabalhar na extração de pedras, pois a Central do Brasil, dona da pedreira, construía e finalizava a Estação de Cesar de Souza.

Após este acidente, foi morar com seu avô, num sitio, onde ajudava a cuidar da lavoura e na criação de bicho da seda, típico trabalho na terra de pequenos proprietários rurais onde o núcleo familiar constituía a base da mão de obra, o que hoje chamamos por agricultura familiar.

Hoje o país reconhece a importância deste tipo de agricultura e segundo Maria Nazareth Wanderley da Universidade Federal de Pernambuco, “o caráter familiar desse modelo de agricultura não é um mero detalhe superficial e descritivo, mas o fato de uma estrutura produtiva associar família-produção-trabalho tem conseqüências fundamentais na vida da família envolvida... cujos fundamentos são dados pela centralidade da família, pelas formas de produzir e pelo modo de vida.”

A alimentação do dia a dia era retirada daquilo que se plantava para comercializar (batata, repolho, marmelo, etc.). A marmelada colocada em caixas de madeira quando pronta passava por fogão a lenha, sendo a massa do marmelo cozida em tachos de cobre e mexido com uma grande “pá” de madeira.

Como não podia deixar de ser em área de imigração, macarrona e polenta no Domingo, durante a semana arroz, feijão e uma mistura, batata, repolho, batata doce e/ou milho. O cuscuz, comida típica brasileiro-americana, sempre de milho, mas, com variações de norte a sul do país, passou por uma adaptação: incorporava em sua massa, os bagres de um rio no bairro da Lagoa Nova, onde um senhor trazia os peixes em covos (armadilha de pesca).

Quando não chovia aqueles que tinham lavoura, se juntavam e faziam procissão pedindo chuva para a plantação. O cortejo tinha que passar por três rios (fonte de água) e iniciava levando uma imagem de Nossa Senhora do Carmo passando em primeiro lugar o rio da Pedreira, seguia pelo ramal e depositava a santa numa capela entre o final do ramal de Sabaúna e a Mogi-Guararema. Quando chovia voltavam para buscar a santa. E “dava certo” no dizer de Dona Nena.

Sobre as procissões, dentro das tradições e religiosidade popular, em comunidades agrárias, diz o folclorista Melo Moraes Filho: “Esses atos religiosos, essas rogações para pedir chuva, anunciados depois da leitura dos pregões pelo pároco da freguesia eram na pluralidade das vezes realizados exclusivamente pelo povo, que acudia espontâneo a aplacar o castigo do céu por meio de demonstrações humildes, de sacrifícios dolorosos, de rezas específicas.”

A diversão ficava por conta dos bailes como o do lencinho, do lampião, da vassoura, do cuscuz, fora o cinema e o teatro. Em outras ocasiões a Festa de Santa Catarina, bairro rural próximo a Sabaúna, era o destino de grupos de mais ou menos dez pessoas com carro de boi à frente carregando as comidas para o “pic nic”, pastel e outros, limonada adoçada com mel, cada família levando alguma coisa. O mel produto típico de um núcleo colonial e da propriedade e produção de colonos, fazia parte das produções do avô de Dona Nena e da dieta caseira com o pão feito em casa com fermento natural recheado com mel.

ovos bicho da seda

Sobre o mel e o bicho da seda


Desde a chegada da família real em 1808 e mais especificamente em 1820 a imigração para a pequena propriedade era incentivada para introduzir novos cultivos e criações no país. Neste início de século XIX, no tocante à produção de mel, a vantagem, em termos de rendimento, da abelha européia ou italiana, era ressaltada frente às abelhas até então existentes no Brasil, dentre elas a Jataí conhecida em São Paulo.

Em relação ao bicho da seda, sua criação era estimulada em Portugal desde pelo menos 1803, quando da publicação de manual que orientava os agricultores quanto à plantação de amoreiras e o método para criar o bicho da seda, ressaltando a relação tipo de amoreiras – qualidade da seda. Já no Brasil a indústria da seda teve início com a Imperial Companhia Seropédica Fluminense ainda nas décadas iniciais do século XIX, e mais tarde tendo D.Pedro II como acionista.
larvas do bicho da seda


Durante o Império um manual agrícola orientava o agricultor para a criação do bicho da seda ou sericicultura, com título “Memória sobre a sericicultura no Império do Brasil” de 1860, talvez o primeiro tratado zootécnico escrito no Brasil.

Dentro desta ótica, na década de 1870, várias perguntas são enviadas pelo governo à câmara de Mogi das Cruzes pedindo informações quanto à existência de criação de abelhas, de bicho da seda, institutos, passeios, escolas agrícolas, jardins botânicos, visando à instalação de um núcleo colonial.

Em Sabaúna, na criação do bicho da seda, o avô de Dona Nena era o único criador e estava embasado em literatura técnica agronômica de livros editados em Portugal.
literatura técnica agronômica
A produção começava com uma carta enviada para Campinas (possivelmente o Instituto Agronômico) pedindo os ovos, pois, desde maio de 1923, naquela cidade, fora criada a Indústria de Seda Nacional, sendo incorporada as indústrias reunidas Francisco Matarazzo em 1935.

Quando chegavam de Campinas, eram depositados em local específico e aí as “sementes”, segundo Dona Nena, começavam a se desenvolver com a eclosão do ovo e folhas de amora para alimentação das larvas, “picadas bem fininhas como couve”. Quando as larvas estavam grandes as folhas já não necessitavam serem picadas com tanto esmero, podendo ser grandes. Com mais ou menos dez anos de idade, Dona Nena saía para colher as folhas da amoreira ressaltando que “na chuva não podia, não podia molhada”.

As lagartas eram colocadas em lugar forrado com jornal, dispostos em prateleiras “como beliche”, depois de dias trocava-se o jornal para fazer a limpeza. A seguir as lagartas começavam a construir seu casulo em folhas de samambaias do mato colocadas no lugar de criação e num movimento constante da cabeça, a lagarta produzia um casulo em volta de si.

Terminados os casulos, “todos juntos feito algodão”, começava a recolha e seu reenvio para Campinas, para beneficiamento. Este processo final tinha um determinado tempo e “tinha que ser rápido se não o bichinho furava o casulinho e não dava para tecer” diz Dona Nena e todo o trabalho estaria perdido com a larva furando o casulo e virando borboleta.

São as memórias de quem viveu um longo século XX e início do XXI e viu as transformações. O início como núcleo colonial que recebia trabalhadores da terra e de além mar e hoje a luta para manter um patrimônio vivo, não só prédios, mas o lugar e sua gente.


Lavoura

Dona Nena quando se refere às plantações de seu avô, tio ou famílias de Sabaúna utiliza sempre a palavra Lavoura. É o correto.

Lavoura vem de labor que significa trabalho, esforço e em alguns casos sofrimento. O trabalho ou o esforço para preparar a terra e cultivá-la é trabalho humano por excelência.

O passado imigrante está presente na utilização do termo.

Por sua correção, neste texto foi mantida a expressão lavoura, em detrimento de agricultura, cultivo, etc. palavras mais utilizadas hoje em dia.


(1) Jacá (adajaka ou aya'ka etimologicamente deriva do Tupi e significa cesto, mais particularmente os grandes cestos cargueiros elaborados com finas fasquias de taquara). O termo é freqüentemente utilizado pela população rural tradicional do Alto Tietê.



Para saber mais

Revista Jangada Brasil http://www.jangadabrasil.com.br/julho/cp11070a.htm
NANNI, Ângelo E.N, Entre o sonho e a realidade: a constituição do núcleo colonial de Sabaúna.

WANDERLEY, Maria N. B. O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade.

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